As apostas subiram – e a manipulação também

As apostas subiram – e a manipulação também 1024 559 Instituto Palavra Aberta

Carlos Alves Müller

“Foi colossal o volume de notícias falsas nas sete semanas do primeiro turno das eleições 2018”. Com essa avaliação, Cristina Tardáguila e Chico Marés, respectivamente diretora e repórter da Agência Lupa, uma das mais respeitadas entidades de checagem de informações que circulam na internet iniciam a coluna publicada na revista Época, no dia 08 de outubro. Ainda conforme os colunistas, os dados coletados pela Lupa indicavam “um cenário alarmante que tende a se agravar com a polarização que se anuncia para os próximos dias”.

Não era para menos de acordo com o levantamento da Lupa, “as 10 notícias falsas mais populares flagradas por seus checadores desde o mês de agosto tiveram juntas mais de 865 mil compartilhamentos no Facebook. Para se ter uma ideia, o volume é duas vezes superior ao número de compartilhamentos registrado pelo polêmico post que o Ceticismo Político fez sobre a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) após a sua morte – e que acabou sendo retirado do ar pelo Facebook quando tinha 360 mil shares”.

Nos dias seguintes, outras fontes confirmavam as previsões sombrias do texto “Nunca saberemos o que aconteceu nesta eleição, mas o que já sabemos …” publicado no site do Instituto Palavra Aberta às vésperas do primeiro turno da eleição. Igualmente preocupantes eram as avaliações e levantamentos de outras fontes. “Os sites de mídia social estão transbordando de desinformação”, dizia o artigo de Zainab Sultan “As Brazil fights election misinformation, fact-checking sites work overtime” (“Enquanto o Brasil luta contra a desinformação das eleições, os sites de checagem de fatos trabalham horas extras” – em tradução automática) publicado no site da Columbia Journalism Review, uma das instituições acadêmicas mais respeitadas do mundo no estudo do jornalismo. O texto lembrava que, em outro artigo, publicado em abril no mesmo site, Ricardo Gandour, diretor de jornalismo da rede brasileira de rádio CBN, já afirmara que: “os eleitores estão convencidos de que notícias falsas vão invadir as eleições brasileiras neste ano. Na esperança de contrariar a desinformação, os jornais cresceram e surgiram agências independentes de vigilância…”

Uma das agências criadas foi a “Comprova”, fruto da cooperação de diversas entidades jornalísticas, lançada em agosto, citado por Zaidan: “Desde o lançamento do Comprova…, o site recebeu quase 47.200 solicitações de verificação em sua linha de ponta do WhatsApp. Na primeira semana, eles desbancaram seis histórias, que mais tarde se transformaram em seis histórias por dia, quando entraram na última semana do primeiro turno das eleições”, afirmou o articulista.

O Grupo Globo preferiu montar uma estrutura própria e, como informou o jornal O Globo em edição do dia 08 de outubro, “Na corrida eleitoral, informações falsas apareceram tanto no discurso dos candidatos quanto em publicações que varreram as redes sociais e as conversas em apps como WhatsApp. Os boatos se multiplicaram do início da campanha até o dia da votação. Desde o seu lançamento, no dia 30 de julho, o Fato ou Fake, serviço de checagem do Grupo Globo, verificou a veracidade de 653 frases ditas por políticos em entrevistas, sabatinas, debates e pronunciamentos, e desmentiu 114 boatos disseminados pela internet”.

Ao longo da campanha, a multiplicação das notícias falsas publicadas e “viralizadas” foi evidente a quem quer que navegasse pela internet ou utilizasse aplicativos como o WhatsApp, especialmente se participasse de uma rede que não se limitasse a amigos com o mesmo perfil partidário. Os organismos de checagem, entretanto, apesar do importantíssimo trabalho realizado, puderam apenas desmentir as notícias falsas mais graves e mais difundidas. Não poderia ser de outra forma. A capacidade de produção de inverdades e sua difusão é imensamente maior que a de apuração de sua veracidade.

O próprio aplicativo “Pardal” do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cuja finalidade é receber denúncias de violação da legislação eleitoral e não de notícias falsas, registrou quase 36 mil denúncias de irregularidades eleitorais até o dia 10/10, o que dá ideia do que ocorria no campo muito mais amplo da manipulação das informações.

Um contraste nada sutil

Em junho, quando ainda era presidido pelo Ministro Luiz Fux, o TSE e a Delegação da União Europeia no Brasil promoveram, o “Seminário Internacional Fake News: Experiências e Desafios”. O evento teve a participação de alguns dos maiores especialistas brasileiros e europeus sobre o tema e foi transmitido online. Ficou claro, então, que a Justiça Eleitoral estava preocupada com o assunto e tinha boas intenções. Já os palestrantes estrangeiros, mais objetivos, apontaram a gravidade do problema e as dificuldades no seu enfrentamento, um contraste nada sutil para o observador atento.

Com a campanha eleitoral já na rua (embora a data oficial para o início da propaganda fosse 16/8) e as notícias falsas e manipulações se multiplicando nos sites, nas redes sociais, e nos aplicativos de comunicação, o ministro Fux foi substituído na presidência do TSE pela ministra Rosa Weber, no dia 14/8. O assunto não foi sequer mencionado em seu discurso de posse, de 12 páginas, disponível no site do Tribunal.

Em entrevista coletiva concedida no dia da eleição, a ministra fez uma declaração notável pela singela franqueza, conforme o site G1 “ao ser questionada sobre o trabalho que vem sendo feito no combate a boatos disseminados na internet”: “De fato, ‘fake news’ é o assunto do momento. O que a Justiça Eleitoral está fazendo? No primeiro momento, aprendendo a lidar com ‘fake news’. Neste primeiro momento, foi compreender o que é uma ‘fake news’” [grifo meu].

Três dias após o primeiro turno da eleição, numa reunião do “Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições”, constituído pelo próprio TSE, a ministra afirmaria, segundo comunicado à imprensa de sua assessoria, que “A disseminação das fake news é um fenômeno deletério, prestando um imenso desserviço aos cidadãos, razão pela qual merece esforço de todos nós – cidadãos, instituições e plataformas de redes sociais – no sentido de comprometimento com a verdade dos fatos e a não proliferação de notícias falsas”. Na mesma ocasião anunciou que “um grupo, composto por servidores do TSE, atuará no segundo turno do pleito deste ano para identificar as notícias falsas que buscam atingir a imagem da Justiça Eleitoral” [sic – grifos meus].

Ainda de acordo com o “press release”, o coordenador do Conselho e secretário-geral da Presidência do TSE, Estêvão Waterloo, um “predestinado”, diria o humorista Macaco Simão (a piada é irresistível) “a Corte já examinou cerca de 30 representações contra esse tipo de propaganda eleitoral irregular”. Ele acrescentou que a avaliação do Conselho era a de que o cenário de disseminação de notícias falsas no primeiro turno “seria infinitamente pior”.  Ele comunicou que a equipe técnica do Tribunal está elaborando uma página para o Portal do TSE na internet, voltada a catalogar as notícias falsas disseminadas com o objetivo de desacreditar o trabalho da instituição. [grifos meus].

Diante das declarações acima, um observador sarcástico poderia afirmar: “que os deuses nos poupem do cenário “infinitamente pior”. O jornal O Estado de S.Paulo ouviu especialistas que não foram sarcásticos, mas severos: “A falta de uma definição por parte do TSE sobre a estratégia a ser adotada para prevenir a disseminação de notícias falsas e a ausência de uma tipificação penal para enquadrar a proliferação delas abriu caminho para um grande número de fake news distribuídas no primeiro turno das eleições, avaliam investigadores e conselheiros do TSE ouvidos pelo Estado” conforme notícia do dia 10/10.

A reportagem lembrava que o TSE “foi comandado por três ministros diferentes ao longo deste ano: Gilmar Mendes, Luiz Fux e Rosa Weber; e revelava que, “durante a gestão de Fux, integrantes da Corte Eleitoral debateram no Conselho Consultivo, criado na gestão de Gilmar, propostas para regulamentar o combate à disseminação de notícias falsas, mas não houve consenso. Ao contrário do esperado, o plenário não aprovou uma minuta sobre o tema, que nem chegou a ser divulgada oficialmente. Era essa minuta que criaria uma diretriz sobre como seria a prevenção e repressão às notícias falsas durante a eleição”.

Se oficialmente as manifestações do TSE eram tranquilizadoras, privadamente, nem tanto. “Segundo dois ministros do TSE ouvidos reservadamente pela reportagem, a polarização entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) vai criar um ‘campo fértil’ para o aumento das fake news no segundo turno. Um deles aponta, no entanto, que nenhum sistema de segurança do mundo consegue impedir a proliferação de notícias falsas e que ‘ninguém poderia imaginar que a truculência iria descambar para o crime’” informava a mesma reportagem.

WhatsApp “novo refúgio dos embusteiros”

A “dissonância cognitiva” do TSE é ainda maior em relação à manipulação das informações por meio do aplicativo WhatsApp. A despeito das evidências coletadas pelo Comprova e do fato de que existem ferramentas amplamente utilizadas por candidatos e empresas com fins comerciais para transmitir simultaneamente, mediante robôs, mensagens para milhares de destinatários, a Justiça Eleitoral preferiu apegar-se a uma definição técnica superada do que seja o WhatsApp. Em consequência, rejeitou representações contra a utilização desse aplicativo, como fez o ministro Luis Felipe Salomão, em 12/10, por entender, conforme press release do TSE emitido no mesmo dia, que “as mensagens enviadas por meio do aplicativo WhatsApp não são abertas ao público, a exemplo de redes sociais como o Facebook e o Instagram. Segundo ele, a comunicação é de natureza privada e fica restrita aos interlocutores ou a um grupo limitado de pessoas”.

O uso massivo do WhatsApp com fins de manipulação não é nenhuma novidade nesta campanha eleitoral. De acordo com o site norte-americano BuzzFeed (com edição em português para o Brasil e muito popular entre os jovens), “A penetração do Facebook no Brasil é sem dúvida impressionante, a terceira no mundo, atrás apenas da Índia e dos Estados Unidos. Mas é o WhatsApp, plataforma que também pertence ao Facebook, que se transformou no verdadeiro coração da internet aqui. Um estudo de 2016 aponta que praticamente 100% dos usuários de internet no Brasil aderiram ao WhatsApp. Isso significa que cerca de 40% dos 207 milhões de brasileiros estão usando o aplicativo”.

Em matéria do repórter Ryan Broderick, publicada no dia 10/10 com o título “A eleição no Brasil mostrou o tamanho da encrenca que é combater fake news no WhatsApp”, o BuzzFeed informava que “O WhatsApp é um pesadelo para as agências de checagem. O Nieman Lab, ligado à Universidade de Harvard, chamou-o de “caixa-preta de desinformação viral”. A natureza do funcionamento do WhatsApp, com suas mensagens criptografadas e enviadas diretamente de um usuário para o outro, torna impossível saber o que as pessoas estão compartilhando pela plataforma e com qual frequência. Mas, se o monitoramento de WhatsApp do projeto Eleições Sem Fake serve como indicativo, o app parece tão coalhado de desinformação quanto o Facebook”.

No mesmo dia 10/10, o site espanhol “Media-tics”, especializado em comunicação abordava a questão da manipulação da informação nas redes e aplicativos digitais, em particular o uso do WhatsApp. Depois de lembrar que “Em 2016 se chegou ao ponto de inflexão sobre as notícias falsas, tomando-se consciência global de sua importância nas democracias do século XXI… O caso é que em meio a essa voragem de lixo (des)informativo, WhatsApp se converteu em novo refúgio dos embusteiros onde jogam com a vantagem da criptografia das mensagens. De pouco serve que se acrescente a etiqueta “reenviado” às mensagens viralizadas: a mentira segue tendo cabida no WhatsApp onde inclusive adota formatos multimídia”. (grifos no original, tradução minha)

Foi somente na já mencionada reunião a portas fechadas do Conselho Consultivo sobre Internet do dia 10 que houve a primeira iniciativa concreta no âmbito do TSE para enfrentar o problema. Na ocasião, conforme noticiado por O Globo, no dia 15/10, com base em fontes não identificadas, os conselheiros “sugeriram medidas de caráter disciplinar contra o  WhatsApp”. Entre as medidas propostas estaria “Estabelecer algum controle sobre o fluxo de informação no aplicativo seria uma forma de o Estado conter a onda de fake news que marcou o primeiro turno das eleições”. A reportagem ressalvava que “as sugestões ainda não tiveram imediata acolhida nas decisões do tribunal”.

Em versão ampliada da mesma reportagem, o jornalista Jailton de Carvalho informava que “No sábado, dois dias depois da tensa reunião do Conselho Consultivo, dois ministros, Luiz Salomão e Carlos Horbach, emitiram decisões opostas. Num despacho, Salomão rejeitou pedido da campanha do presidenciável Fernando Haddad (PT) de exclusão de um vídeo por entender que o WhatsApp é um aplicativo de comunicação privada. Numa outra decisão, Horbach acolheu pedido da campanha do candidato a presidente Jair Bolsonaro (PSL) e ordenou que o WhatsApp excluísse de seus arquivos um vídeo com críticas a integrantes do judiciário”.

Seria preciso esperar até o dia 16 de outubro, menos de duas semanas antes do segundo turno das eleições, para que o WhatsApp se manifestasse oficialmente prometendo, segundo reportagem de O Estado de S.Paulo, “avaliar sugestões do Conselho Consultivo Sobre Internet e Eleições do TSE para combater as ‘fake news’, segundo apurou o Estadão/Broadcast. Uma das ideias apresentadas na reunião realizada nesta terça-feira, 16, foi a de reduzir ainda mais a quantidade de vezes que uma mesma mensagem pode ser compartilhada – das atuais 20 para 5, como é feito na Índia”.

Como se a campanha eleitoral não estivesse na reta final, na reunião, realizada via teleconferência entre representantes do TSE e WhatsApp, ainda segundo o jornal, “o aplicativo também colocou em mesa as suas propostas, que agora serão avaliadas pela área técnica do TSE. ‘Eles se propuseram de oferecer ao TSE algumas ferramentas que não são comuns para o usuário ordinário. E o TSE vai avaliar a utilidade dessas ferramentas para os interesses da Justiça Eleitoral’, contou o vice-procurador-geral eleitoral, Humberto Jacques, sem entrar nos detalhes da proposta”.

“Nunca saberemos o que aconteceu nesta eleição. Nunca saberemos a profundidade e a amplitude da manipulação da informação e seu impacto sobre o comportamento do eleitorado. Mas o que já sabemos é gravíssimo e não haverá volta atrás”. Assim começava o texto anterior produzido para o site do Instituto Palavra Aberta. O que aconteceu desde então permite repetir o fecho utilizado pelos matemáticos quando concluem a demonstração de um teorema:

CQD – Conforme Queríamos Demonstrar.

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