Democracia literária

Democracia literária 550 345 Instituto Palavra Aberta

* Francisco Viana

Que contraste! A tentativa de proibir biografias não-autorizadas mobilizou tantos ícones brasileiros – de Roberto Carlos a Caetano Veloso, todos com forte influência junto à opinião pública – e, no final, o Superior Tribunal Federal (STF) se revelou, por unanimidade, favorável.

A decisão foi motivada por Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada, em 2012, pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL). O resultado torna-se um marco jurídico emblemático. Estamos caminhando para construir uma sociedade aberta, com as leis regulando a vida dos cidadãos, não mais sendo instrumento de limitações ou de proteção de poucos.

O que acontece ou aconteceu? Primeiro, a sociedade brasileira vem mudando ao longo dos anos e, com determinação, abraçando teses modernas. Afinal, as chamadas biografias autorizadas estavam no passado, sem qualquer ingrediente de futuro, salvas para um pequeno punhado de herdeiros de grandes nomes e de produtores culturais entrincheirados em uma visão individualista da vida. Esses, era notório, alinharam-se com uma causa perdida, típica dos idos do Brasil escravagista ou dos idos, também elitistas, dos regimes militares (Estado Novo e Pós-64) em que grassou a censura.

A sociedade, por sua vez, despertou para aquela que é uma das características essenciais da democracia: a mobilização a favor da liberdade de expressão. E foi o que aconteceu. O Instituto Palavra Aberta, por exemplo, foi contra a censura já na primeira hora. Posicionou-se com objetividade e transparência, mostrando que, inclusive, a situação então vigente repercutia de forma negativa na produção universitária, que necessita ser livre de correntes mobilizadoras de qualquer tipo. Sim, foi um salto à frente já que a atividade acadêmica geralmente é esquecida.

Se há limitações, evidentemente, o conhecimento não progride. Se isso não acontece, a tendência do País seria regredir culturalmente. As consequências, como se sabe, é o atraso em múltiplos setores, inclusive tecnológico. Ao expor suas posições, a sociedade deixou claro que as biografias envolvem responsabilidades e se estas não forem respeitadas, os responsáveis irão ter que encarar o rosto da lei. Se seria assim, a censura prévia estava com os dias contados.

A decisão do STF demonstra o acerto dos posicionamentos democratizantes. Mas pode-se ir além. Há algum tempo, mais exatamente a partir da Constituição de 1988, temos assistido gradual prevalência das leis. É um movimento lento, mas inexorável, que não distingue classes sociais e que, embora ainda incompleto, não pode mais passar desapercebido. Não é preciso ir muito longe e fazer o inventário de nomes influentes que vêm sendo enredados pelas malhas da lei.

Não é só a impunidade que caminha para o ocaso. Bastiões antes intocáveis, como as biografias, estão ruindo. Mudaram-se os tempos e, com eles, as vontades. A novidade em relação ao passado é que a filosofia jurídica se volta para a sua essência, a liberdade. Isto pode explicar a histórica votação do STF. Pode explicar porque os bastiões dos privilégios revelam-se sem força e cedem lugar a novos paradigmas modernizantes.

* Francisco Viana é jornalista, consultor, mestre em filosofia política (PUC-SP)

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