O verdadeiro, o falso e o que ainda não se sabe sobre notícias falsas e desinformação

O verdadeiro, o falso e o que ainda não se sabe sobre notícias falsas e desinformação 581 318 Instituto Palavra Aberta

As notícias falsas, sua origem, porque adquiriram a importância que têm atualmente e o processo de desinformação que ameaça a democracia são o tema dos textos que o Instituto Palavra Aberta publica a partir de hoje. Eles estarão disponíveis no site e em mídias sociais, atualizados semanalmente.

O material, é produzido por Carlos Alves Müller, jornalista e doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. O objetivo desse projeto é contribuir para o esclarecimento do público sobre a problemática das notícias falsas (“fake news”) e mais amplamente do problema que representam para vigência da Democracia no Brasil, especialmente nestes meses de campanha eleitoral.

Antes de tratar dos muitos aspectos do assunto, é necessário ressaltar que a crítica da produção e difusão de notícias falsas e de outras formas de desinformação nos textos que integram este projeto não envolverá, em hipótese alguma, o apoio a iniciativas que tolham a liberdade de expressão, como ocorre com alguns projetos de lei, no Brasil e no exterior. Há uma diferença radical entre o exercício da liberdade de expressão e os crimes previstos em lei nas atividades de comunicação de qualquer natureza.

Como afirma o jornalista britânico Matthew D’Ancona, “Da mesma forma que pós-verdade não é simplesmente outro nome para mentira, essa indústria [da desinformação, da propaganda enganosa e da falsa ciência] não tem nada a ver com as ações de lobby e as relações corporativas legítimas”. O esforço de pessoas, empresas e entidades de públicas e privadas, prossegue D’Ancona, “têm todo o direito de buscar representação profissional no labirinto governamental e midiático. Tudo isso é parte da luta de foice associada à formulação de políticas, consultas e publicidade, e não é uma ameaça à estrutura cívica saudável”.

Por que as notícias falsas se tornaram um problema tão grave?

Notícias falsas sempre existiram, adverte o historiador Robert Darnton. Há uma longa história da desinformação, tem alertado ele em artigos publicados em diversos jornais. Como exemplo de que informações falsas ou “verdades alternativas” (neologismo criado pela assessora de comunicação do presidente norte-americano Donald Trump, Kellyanne Conway), podem ser encontrados desde a Antiguidade, Darnton cita o caso de Procópio, um historiador bizantino do século VI.

Procópio, conta Darnton, “escreveu um livro cheio de histórias de veracidade duvidosa, História Secreta (Anedota no título original), que manteve em segredo até sua morte, para arruinar a reputação do imperador Justiniano” Isso ao mesmo tempo em que escrevia a história oficial do período, exaltando a figura imperial.

Outro exemplo citado por Darnton é o de Pietro Aretino que em 1522 se empenhou em influenciar na eleição do papa “escrevendo sonetos perversos sobre todos os candidatos menos o preferido por seus patronos, os Médicis, e os afixando, para que todo mundo os admirasse, no busto de uma figura conhecida como Il Pasquino, perto da Piazza Navona, em Roma”.

No Brasil colonial, quando a imprensa ainda era proibida, um caso tão grave quanto pouco conhecido de uso político de notícias falsas ocorreu em Minas Gerais e foi decisivo para a eclosão e evolução do que alguns historiadores consideram a primeira guerra civil das Américas – a Guerra dos Emboabas (1708-1709). Emboabas eram os portugueses e brasileiros principalmente originários da Bahia que chegara à região onde rústicos desbravadores, em sua maioria originários de São Paulo, haviam descoberto ouro. O termo deriva da palavra tupi “buabas”, aves com penas até os pés, em alusão às botas usadas pelos recém-chegados.

A história do conflito em torno das concessões de lavra é imprecisa, mas segundo alguns relatos, a situação se deteriorou quando, em novembro de 1707, circulou entre os emboabas a “notícia” de que os paulistas se preparavam para dizimar os rivais num massacre marcado para 10 de janeiro de 1708, dia de São Bartolomeu. A “informação”, levou os emboabas a se organizarem e a buscarem reforços. O recurso foi uma arma usada com especial habilidade pelos emboabas. Em algumas ocasiões, os paulistas desistiram de enfrentamentos porque foram levados a crer que estavam em minoria, pelos boatos disseminados pelos inimigos.

Segundo a historiadora Adriana Romeiro, “a estratégia do boato põe em evidência uma faceta pouco explorada da Guerra dos Emboabas”. A disseminação de boatos, diz ela, atuou como uma arma eficaz na prática política dos moradores das Minas no século XVIII”.

As notícias falsas na atualidade

A difusão avassaladora de notícias falsas, com graves implicações políticas, econômicas e sociais tornou-se um fenômeno mundial de grandes proporções nos últimos anos, principalmente em consequência de seu impacto sobre as eleições presidenciais dos Estados Unidos (2016), o plebiscito sobre a permanência da Grã Bretanha na União Europeia (Brexit, 2017) e outros eventos de repercussão internacional. O fato, segundo diversos analistas, está associado à emergência de uma “Era da pós-verdade” (“post-truth”, termo apontado como a expressão do ano pelos responsáveis pelos dicionários Oxford).

A difusão de informações falsas na atualidade pode ter objetivos semelhantes aos do passado em diversos casos, mas suas características e condições de disseminação são muito diferentes. Desde que o fenômeno foi detectado, instituições públicas e privadas se dedicam a estudá-lo, constatando que se trata de algo muito mais complexo que a mera difusão de informações falsas ou deturpadas por parte de organizações indivíduos ou interessados em interferir no comportamento político, econômico ou social da cidadania.

A produção e veiculação de notícias falsas, sabe-se hoje, é algo muito mais amplo e grave que iniciativas isoladas. Devido ao ecossistema digital, são ações tecnologicamente sofisticadas e, nos casos mais sérios, executadas de forma automatizada. São, além disso, viabilizadas economicamente segundo um modelo de negócio que as torna altamente rentáveis, além de produzir impactos políticos, sociais e econômicos de magnitude variável.

A forma como as notícias falsas incidem sobre o comportamento dos indivíduos também tem sido objeto de intensos estudos que apontam as formas específicas de sua incidência em relação à recepção, processamento e multiplicação de informações na sociedade. Embora as notícias falsas e outras formas de manipulação e desinformação preservem algumas características da difusão de boatos e de notícias em geral, configuram um comportamento e uma dinâmica peculiares que variam de sociedade para sociedade em função de uma multiplicidade de fatores.

Os textos que serão publicados aqui tratarão de mostrar que os fatores mencionados nos parágrafos anteriores precisam ser levados em conta quando se trata de enfrentar o problema das notícias falsas para que os brasileiros possam exercer seus direitos políticos com liberdade e cientes das implicações das opções que venha a fazer em contexto político-eleitoral.

 

CArlos Müller - foto

Carlos Alves Müller, jornalista (63 anos), Doutor em Estudos Comparados em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília, fez pesquisa de pós-doutorado em comunicação na mesma universidade. Vencedor do Concurso de Ensaios sobre a Declaração de Chapultepec e a Legislação Nacional de Imprensa, promovido pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Consultor da Associação Nacional de Jornais (ANJ).

Para saber mais:

 Pós-Verdade: A nova guerra contra os fatos em tempos de FAKE NEWS

Matthew D’Ancona

Faro Editoral, 2018

Notícias falsas existem desde o século 6, afirma historiador Robert Darnton

Folha de S. Paulo 19/02/2017

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859726-noticias-falsas-existem-desde-o-seculo-6-afirma-historiador-robert-darnton.shtml

The True History of Fake News

Robert Darnton

The New York Review of Books 13/02/1917

http://www.nybooks.com/daily/2017/02/13/the-true-history-of-fake-news/

Os Rumores na Guerra dos Emboabas

Adriana Romeiro

in Sons, Formas e Movimentos na Modernidade Atlântica.

(org.) Júnia Ferreira Furtado

Editora Anablume 2008

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