25 anos – Constituição expressa conquista da liberdade

25 anos – Constituição expressa conquista da liberdade 150 150 Instituto Palavra Aberta

* Lourival J. Santos

A Constituição brasileira completa 25 anos de existência, data que festeja ao lado de sua irmã, gêmea univitelina, gloriosamente alcunhada de democracia

Tida por alguns como reativa e prolixa, por querer a tudo regular, não evitando casuísticas e desnecessárias minuciosidades como diria o sempre admirado Carlos Maximiliano, ela, no entanto, expressa, de forma soberba, a conquista da liberdade e da dignidade da pessoa humana, dentre outros valores de proa, pela sociedade brasileira, após quase trinta anos de submissão a um regime de força, que lhe acorrentara a autonomia e tutelara a vontade.

Não há como deslembrar desse período. O Brasil que se arrastava sob o peso do regime militar nascido do golpe de 1964, travestido em quase democracia pela Constituição de 1967 e pela Emenda 1, de 1969, que alterou a primeira, promulgadas pelo próprio regime ao azo de acomodar os termos da revolução, se viu, em razão de clara insegurança política, cercado por um sem número de normas de natureza constitucional, chamadas de atos institucionais e atos complementares, além de decretos-leis também editados em profusão, com os quais o cenário jurídico do país se tornou confuso e nada invejável.

O constitucionalista e político Afonso Arinos de Melo Franco, na obra Teoria da Constituição — As Constituições do Brasil resumiu o momento com rara precisão: “Seguiu-se uma floração tão abundante de textos, que o intérprete tem dificuldades em se situar dentro da torrente, que se iniciou durante o período de inútil esperança na manutenção da Constituição de 1946, avolumou-se durante a curta existência da Constituição de 1967 e prosseguiu com o mesmo vigor no regime da atual Constituição de 1969. (…) A análise dessa profusa e confusa legislação de Direito Público requereria um livro especial, de utilidade bastante duvidosa.”

Dos atos institucionais o de número 5, que entrou em vigor em dezembro de 1968, representou o marco histórico do despotismo no país, por se constituir num dos mais violentos e arbitrários atos governamentais contra os direitos e as garantias individuais e em prejuízo da liberdade e da dignidade da pessoa humana de que se tem notícia.

Como tive a oportunidade de frisar em texto há algum tempo publicado, a sociedade de então, historicamente neófita em democracia, viu-se compelida a renunciar o pouco que sabia nessa área para tolerar o cerceamento radical e absoluto do direito de transmitir ideias e pensamentos, como se o dom do espírito, refletido na independência opinativa, passasse a compor o rol dos atos ilícitos.

Das inúmeras arbitrariedades perpetradas pelo AI5, a suspensão da garantia do Habeas Corpus aos que fossem considerados subversivos, ocupou lugar de destaque e, assim, a sociedade brasileira foi também ameaçada de ficar privada de uma das mais sublimes garantias legais da pessoa contra arbítrios e abusos de poder.

Nesse clima de total insegurança o povo temia qualquer conflito com a ideologia reinante e, destarte, era forçado a calar ou esconder o que pensava e, assim, desconsiderar o real significado da liberdade de expressão, como o valor fundamental da vida racional em sociedade. “A minha gente hoje anda, falando de lado e olhando pro chão”, protestava o sempre atento Chico Buarque.

O AI5, em realidade, representou a instauração da ditadura e o fim do regime constitucional no país. Em seus Comentários à Constituição de 1969, o jurista Pontes de Miranda escreveu que: “com dois golpes, de 1964 e de 1968, se tornou difícil a volta da democracia e da liberdade; mas, a despeito das dificuldades, a volta é necessária, para que se consiga o desenvolvimento científico, econômico e técnico do Brasil.”

O certo é que se instaurou o caos no ambiente sócio cultural e as portas, imediatamente, se escancararam para o autoritarismo desmedido contra os direitos e as garantias do cidadão, cujo exercício da liberdade de exprimir suas convicções ficava à mercê de despropositadas perseguições políticas e condenações arbitrárias, aos que ousassem pensar e se manifestar ao revés do poder dominante.

Era assim a nossa triste realidade. De um lado, o Estado a tutelar os direitos individuais do cidadão, politicamente acriançado por imposição da força dominadora e, de outro, a censura se apresentando como se fosse um bem jurídico, quando em verdade representava um instrumento autoritário de cerceios e impedimentos. Tércio Sampaio Ferraz Júnior em poucas palavras bem definiu a censura: “A ordem da censura é a ordem da cidadania emasculada”.

No terreno da comunicação a experiência foi desastrosa e muito embora o nosso até ingênuo despreparo político não nos tivesse permitido avaliar, naquele momento, a real extensão do enorme desastre, era perceptível o recrudescimento do poder absolutista a exigir cega obediência ao modelo político de exceção por ele determinado.

Em nós, moços acadêmicos daquela década de 70, bateu um enorme desacorçoo misto de ansiedade e desesperança, por termos de manter calados os princípios primaciais do estado de direito que nos eram lecionados, com ênfase, por ilustres luminares, como Goffredo da Silva Telles, José de Pinto Antunes, dentre outros não menos cultos e nobres, ao tempo em que folheávamos a Constituição da terra, com melancólica desatenção.

Enquanto nos entusiasmavam as teorias de Jacques Rousseau sobre a formação da sociedade civil ou a de Charles Montesquieu sobre a separação dos poderes, consideradas, com justiça, por Norberto Bobbio, como as células medulares do estado democrático e em contraposto aos poderes absolutistas, percebíamos que o Brasil daquele momento vivia o oposto de tais filosofias.

E nesse clima de total desconcerto é que se tentava apreender, ao menos idealmente, os princípios do direito constitucional e a necessária amplitude e pujança dos seus fundamentos e os assimilar como nos fosse possível, já que se carecia para tanto do apoio da própria Carta Brasileira, completamente garroteada pela autocracia cesarista.

Mas mudou, tudo mudou. O cenário jurídico do país é outro sob os auspícios do Estatuto de 88, que consagra a liberdade de expressão sem barreiras como direito fundamental e define a República Federativa do Brasil (artigo1º) como um estado democrático de direito, instaurado, segundo as palavras do saudoso mestre Miguel Reale, “com base nos valores fundantes da comunidade”.

São hoje realçadas, como regras essenciais, o exercício pleno dos direitos individuais e o significativo sistema pluralista, assentado na igualdade e na justiça, além de enaltecidos o respeito à cidadania e a pessoa humana, esta, segundo o notável Miguel Reale, “valor fonte de todos os valores”.

Embora a sociedade atual, volta e meia, teime em demonstrar não saber conviver e lidar naturalmente com esses valores, talvez estigmatizada pela opressão sofrida durante todos aqueles anos de indesejável mutismo político e que ainda sejam comuns e frequentes as tentativas de censura à livre manifestação da opinião, na verdade temos hoje uma Constituição democrática e somente nos resta assimilar e acatar com discernimento os princípios que ela condensa.

Como escreveu o notável Josaphaf Marinho em seus Estudos Constitucionais, ao refletir sobre o poder das ideias consistentes e o seu influxo na história dos povos, não há como duvidar de que as ideias que fundamentam e materializam os valores hoje aclamados pelo Texto supremo, malgrado as ainda pontuais controvérsias, “repontam” — e certamente prevalecerão — “com o vigor das construções definitivas”!!

* Matéria veiculada no site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br). Lourival J. Santos é advogado em São Paulo, diretor jurídico da Associação Nacional dos Editores de Revistas e conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo e do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional.

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