A toxicidade do futebol brasileiro nas redes sociais

A toxicidade do futebol brasileiro nas redes sociais 1024 683 Instituto Palavra Aberta

Mariana Mandelli é coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta

Em entrevista coletiva à imprensa após a vitória do Bahia sobre o Flamengo em casa, no último domingo, o técnico Rogério Ceni criticou o comportamento de alguns torcedores: “Alguns jogadores não agradam mais as pessoas. São execrados antes mesmo da escalação. A rede social, terra de ninguém, não dá chances”. Dias antes, ao anunciar sua demissão do Fluminense, Renato Gaúcho fez um comentário parecido: “Acabou o futebol. Acabou por causa das redes sociais. Tanto para o jogador quanto para o treinador”.

Para além da concepção errada de que não existe punição para crimes virtuais e da previsão catastrófica sobre o fim do esporte mais popular do País, as declarações de ambos apontam para um problema que, nos últimos anos, vem tomando grandes proporções: o imensurável número de ofensas, preconceitos e ameaças que atletas, comissões técnicas e jornalistas esportivos sofrem nas mídias sociais. São mensagens que extrapolam críticas, disseminam ódio e incitam violência, voltadas notavelmente à modalidade masculina.

Qualquer pessoa que vá a um estádio de futebol no Brasil ouvirá xingamentos direcionados a jogadores, especialmente em partidas importantes ou quando o clube está em uma fase ruim. Apesar de dividir opiniões — há quem ache que o apoio deve ser incondicional, há quem pense que tem direito de cobrar como desejar —, as formas de “corneta”, nome dado ao torcedor que vive de criticar o próprio time, mudaram com a presença de atletas, torcidas e instituições futebolísticas nos ambientes digitais.

Se antes as reclamações concentravam-se nas arquibancadas com a “turma do amendoim”, como dizia o técnico Luiz Felipe Scolari, ou em protestos das torcidas organizadas nos centros de treinamentos, hoje qualquer um tem acesso a atletas, técnicos, árbitros e demais atores por meio das redes sociais.

O volume e a velocidade dessas mensagens, muitas vezes anônimas, são notavelmente maiores e mais constantes do que qualquer movimento offline. E o conteúdo, muito mais intimidante. Não à toa, a maioria dos jogadores permite, em seus perfis, apenas comentários de amigos e familiares.

Alguns clubes têm feito ações para se proteger da violência online. Em abril de 2022, o Corinthians ficou dias sem realizar ações de comunicação, com o objetivo de chamar atenção para “o clima de violência e a disseminação de ódio e fake news” que resultou em ameaças de morte a alguns jogadores. Um deles, o meia William, rescindiu seu contrato com o alvinegro meses depois justamente por esse motivo.

Principal rival do Corinthians, o Palmeiras lançou em 2024 a campanha #SomosSociedade, com objetivo parecido: combater “o ódio dentro e fora” dos campos. Na  ocasião, a presidente do clube Leila Pereira declarou: “Não podemos aceitar que o futebol se transforme em um ambiente de preconceito e violência”.

Apesar dos esforços, é preciso mais do que isso para transformar a realidade — inclusive dentro das próprias instituições, já que seus profissionais também se envolvem em situações do tipo. O caso mais recente foi o do atacante Vitor Roque, do Palmeiras que, após a vitória sobre o São Paulo pela 27ª rodada do Brasileirão, postou uma imagem de um tigre mastigando um veado, em alusão ao seu apelido “Tigrinho” e à forma homofóbica como muitos torcedores se referem aos são paulinos. O conteúdo foi apagado, mas gerou enorme repercussão, inclusive do Porco Íris, maior coletivo LGBTQIA+ de palmeirenses.

Não é segredo que o esporte mais amado do Brasil é terreno fértil para os mais diversos tipos de violência. O cenário é mais complexo do que parece e vem, há décadas, sendo estudado pelas ciências sociais. O que ocorre nas mídias sociais é apenas consequência de um ambiente offline extremamente tóxico em diversos níveis, especialmente para minorias.

Ao contrário do jargão popular, futebol se discute, sim. E deve ser cada vez mais discutido, mas de modo saudável e democrático. A “guerra de críticas”, como definiu Renato Gaúcho, só é aceitável quando não fere a liberdade de expressão. Discursos de ódio e ameaças de morte não são “futebol raiz” ou “zoeira”: são crimes.

    Utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossa plataforma. Ao continuar navegando, você concorda com as condições previstas na nossa Política de Privacidade.