A verdade sonegada pode ser pior que a notícia falsa

A verdade sonegada pode ser pior que a notícia falsa 1024 559 Instituto Palavra Aberta

Carlos Alves Müller

Candidato a alguns dos prêmios Oscar, o filme “The Post” (The Post – A Guerra Secreta, na versão brasileira) não ganhou nenhum troféu. Não importa. Seu grande mérito, o de recolocar no debate público a importância do direito do cidadão de ser informado sobre questões que afetam sua vida e seus direitos, já estava assegurado e ninguém o arrebatou. O tema estava esquecido há algum tempo e mais ainda desde que o problema das notícias falsas emergiu com intensidade na campanha eleitoral que levou Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.

The Post, como presumivelmente sabe o leitor, trata do esforço do jornal The Washington Post para levar ao conhecimento dos norte-americanos o teor de um imenso relatório sobre o envolvimento de seu país na Guerra do Vietnã, encomendado pelo Departamento (Ministério) da Defesa. O The New York Times, mais influente, havia iniciado a divulgação dos documentos, mas havia sido impedido de prosseguir devido a uma decisão da Justiça Federal, acolhendo uma demanda do Ministério Público.

O Post, que corria atrás do Times na cobertura, conseguiu parte dos documentos e decidiu publicar também, mesmo sabendo que corria riscos ainda maiores que a “velha senhora grisalha”, como era conhecido o Times.  Entre outras razões, pesava o fato de que era um jornal menor e estava em meio a um processo de abertura de capital – afinal, um conflito aberto com o governo federal poderia assustar os investidores num momento crítico.

O filme foi recebido com críticas a passagens que não corresponderiam à verdade factual. Algumas procedem, mas o filme não é um documentário e sim uma versão romanceada de um episódio histórico. O essencial está lá. É uma história muito bem contada, como costumam ser os filmes de Steven Spielberg, magnificamente interpretada por Maryl Streep e Tom Hanks nos papéis, respectivamente, da dona do jornal, Kathy Graham, e do chefe de redação, Ben Bradlee. Como o caso ocorreu há 47 anos, é de presumir que ninguém ficará incomodado por saber como transcorre a história ou como o filme termina.

Os documentos, cujo “vazamento” dá origem à história, tinha o título completo de “História do processo de tomada de decisão dos Estados Unidos sobre a política no Vietnã” e ficou conhecido como “Papéis do Pentágono”. Era um conjunto de relatórios em 47 volumes, encomendado pelo Secretário da Defesa Robert McNamara em meados de 1967 e concluído cerca de um ano e meio depois, ainda sob um presidente democrata (Johnson).

O essencial na questão, clara no filme, é que o sigilo ocultava algo que autores dos documentos sabiam perfeitamente: que o governo aumentou os gastos e passou a enviar mais e mais jovens para uma guerra (e para a morte) na qual os Estados Unidos não tinham nada a ganhar e estava perdida. Por quê?

Embora fizessem um retrospecto das decisões de todos os governos norte-americanos desde a presidência de Eisenhower (1953-1961), os “Papéis” eram mais comprometedores para os presidentes democratas Kennedy e Johnson que o sucederam porque ambos haviam determinado a escalada militar, sabendo que o pântano vietnamita não era apenas uma realidade geográfica. O caso eclodiu quando a Casa Branca era ocupada, desde o início de 1969, pelo republicano Nixon que, em princípio, não tinha motivo algum para defender os rivais, especialmente Kennedy que o derrotara eleitoralmente anos antes. Esse, aliás, é um dos “erros factuais” do filme. De fato, Nixon a princípio pareceu gostar que a lama democrata viesse à tona. Mudou de atitude. Por quê?

 Jornais vencem na Suprema Corte por 6 a 3

Quando iniciou a publicação de suas matérias sobre os documentos, o Washington Post também foi processado, mas num tribunal de outra jurisdição. Venceu nessa instância e o caso foi levado à Suprema Corte tendo o Times na mesma trincheira. Já o governo, subitamente esqueceu as rivalidades partidárias e agiu… como governo.

O procurador alegou que os documentos eram sigilosos, que sua revelação colocava em risco a segurança nacional e dos combatentes, que desacreditava o país frente a seus aliados e que os envolvidos no vazamento e na divulgação das informações deveriam ser enquadrados na Lei de Espionagem.

Os jornais invocaram a Primeira Emenda à Constituição (sobre liberdade de imprensa), argumentando que o governo não tinha direito de pedir a censura prévia aos documentos e, principalmente, que o povo tinha “direito de saber” o que o governo ocultava: que a guerra não tinha sentido e era mantida por motivos políticos inconfessáveis.

As acusações eram tão frágeis e sem evidências que as sustentassem que foram desconsideradas pela Suprema Corte. Não foi uma decisão tão simples como o filme sugere, embora não esteja errado na sua essência. O professor de direito Owen Fiss, da Universidade de Yale, é autor de um artigo sobre o caso. Ele comenta que cada um dos nove juízes apresentou um voto em separado e um voto conjunto (“per curiam”).

O voto conjunto, que representava a posição da maioria (6 a 3 a favor dos jornais), no âmago sintetizava opinião dos juízes mais liberais embora fizesse concessões aos que tinham posições não tão resolutas. Conforme Fiss, o voto “per curiam” “implicava o seguinte silogismo: 1) as proibições [de publicar] constituem censuras prévias; 2) as censuras prévias exigem uma justificativa especialmente forte; 3) o procurador geral não conseguiu satisfazer essa exigência de justificativa; 4) portanto, a proibição da publicação dos Documentos do Pentágono não pode prosperar”.

O resultado do julgamento foi festejado pelos jornais, obviamente, mas também por todos os liberais norte-americanos e por aqueles que se opunham à Guerra do Vietnã. Teve repercussão mundial por seu teor, mas também porque as decisões da Suprema Corte dos EUA tendem a tornarem-se referência para tribunais de outros países democráticos, inclusive o Brasil. Por isso o caso é internacionalmente tão importante até hoje, encarado como um marco na defesa da liberdade de imprensa.

O professor Fiss não é tão otimista em seu artigo e faz considerações pertinentes. A primeira explica a mudança de atitude de Nixon. Ele destaca que a decisão não teve o objetivo de proteger a imagem de seus antecessores e adversários, mas de proteger o sistema de classificação e sigilo das informações oficiais, mantendo a possibilidade de punição dos responsáveis por vazamentos, inclusive por meio da Lei de Espionagem.

Não foi tão bom quanto parece

O mais importante na análise de Fiss é que a Suprema Corte negou o pedido de censura aos jornais, mas não descartou a possibilidade de que a legislação penal, no caso a Lei de Espionagem, fosse aplicada a posteriori, como de fato foi. Os jornais, seus diretores e jornalistas foram absolvidos num contexto de forte pressão popular a seu favor, mas Daniel Ellsberg, responsável pelo vazamento, foi condenado a uma pena que teria chegado a 115 anos de prisão. Isso só não ocorreu porque foi provado que agentes do governo, sem autorização judicial, haviam grampeado seu telefone e vasculhado o consultório de seu psicanalista em busca de informações que o desacreditassem.

Como o filme e toda sua vida posterior mostram, Ellsberg foi movido pela indignação diante da contradição entre o teor dos documentos e o que diziam as autoridades ao defender a escalada da guerra. Além disso, só forneceu os “Papéis” aos jornais depois de tentar convencer parlamentares a denunciarem o caso publicamente. A perseguição e as condenações dos responsáveis por vazamentos ocorridos desde então mostram que a avaliação de Fiss era correta – Bradley Manning (cumpriu pena) Julien Assange (há anos asilado na embaixada equatoriana em Londres, em virtual prisão domiciliar) e Edward Snowden (asilado na Rússia) que o digam…

Outra conclusão de Fiss é que nenhum dos votos representou uma interpretação jurisprudencial inovadora. Juridicamente, não estabeleceu o “direito do povo de saber”, como chegou a comemorar o The New York Times. A importância daquela decisão da Suprema Corte foi circunstancial, simbólica e política.

Do ponto de vista político, como diriam os anfitriões do Oscar, o prêmio de melhor análise do caso dos “Papéis do Pentágono” vai para… Hannah Arendt. É, mais uma vez é ela que nos socorre com sua lucidez implacável.

No artigo “Lying in Politics: Reflections on The Pentagon Papers”, publicado na revista The New York Review of Books de novembro de 1971 (a tradução brasileira faz parte do livro “Crises da República”), a sempre arguta Hannah Arendt disseca o caso. O que ela aponta é que os documentos não continham nenhuma informação factual relevante que já não fosse do conhecimento do público bem-informado. Mostra que o que continham, inclusive os relatórios de inteligência (CIA), eram evidências de que as justificativas para o crescente envolvimento dos EUA no Sudeste Asiático não tinham sustentação econômica, territorial, ideológica ou geopolítica. Foram sendo alteradas sucessivamente até ficar claro que a razão da guerra não era militar nem fazia mais (se é que em algum momento fez) parte de uma estratégia de poder global.

Já sob o governo Johnson, imediatamente anterior a Nixon o quadro era assim descrito por Arendt:

“O alvo básico não era nem poder nem lucro… O objetivo era agora a própria imagem, como está manifesto na linguagem dos ‘resolvedores de problemas’ com seus scripts e ‘plateias’ tomados emprestados do teatro… quando todos os sinais indicavam a derrota na guerra de desgaste, o objetivo já não era mais evitar uma derrota humilhante [a primeira dos EUA, uma responsabilidade histórica que nenhum presidente envolvido queria para si] mas descobrir meios e modos de evitar admiti-la e ‘salvar a cara’”.

Um dos diálogos do filme reproduz a informação que Arendt cita do documento escrito por McNaughton (um dos autores dos “Papéis”): as metas dos EUA no Vietnã já em 1965 eram “70% evitar uma derrota humilhante… 20% evitar que o Vietnã caia em mãos chinesas e 10% permitir que o povo do Vietnã do Sul desfrute de um modo de vida melhor e mais livre”. Foi essa farsa, para voltar à linguagem teatral, que a revelação dos “Papéis do Pentágono” desmontava e contribuiria para que a oposição popular à guerra se tornasse avassaladora.

E o papel da imprensa na análise de Hannah Arendt? Para ela, “o que sempre foi sugerido agora foi demonstrado: na medida em que a imprensa é livre e idônea, ela tem uma função enormemente importante a cumprir e pode perfeitamente ser chamada de quarto poder…”

Hannah Arendt não conheceu Donald Trump, obviamente, uma vez que faleceu em 1975, mas parece que antevia o espectro que atualmente habita a Casa Branca ao concluir seu comentário sobre a imprensa afirmando: “Se a Primeira Emenda será suficiente para proteger a mais essencial liberdade política, o direito à informação não-manipulada dos fatos, sem a qual a liberdade de opinião não passa de uma farsa cruel, é uma outra questão”. Uma questão atualíssima.

Com o ultradireitista Brett Kavanaugh na iminência de ser aprovado pela maioria republicana para a Corte Suprema, apesar da negativa do governo de revelar documentos sobre sua passagem pela Casa Branca como assessor de Bush, aumentam as ameaças à democracia norte-americana, como apontou o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman em seu artigo Kavanaugh Will Kill the Constitution” (Kavanaugh Matará a Constituição), publicado pelo The New York Times recentemente (06/9).

Notícias falsas, por mais que sejam uma preocupação no momento, não são a única e em muitos casos não são a principal forma de desinformar as pessoas. Recorrendo novamente a Hannah Arendt em seu texto sobre os “Papéis do Pentágono”: “Sigilo… e embuste, ou seja, a falsidade deliberada e a mentira descarada, são usados como meios legítimos para alcançar fins políticos desde os primórdios da história documentada. A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas e mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes assuntos.

A relação entre segredo de Estado e direito do cidadão a ser informado não é tranquila nem estável. Hannah Arendt sabia disso, embora fosse cética quanto à legitimidade dos sigilos, até por sua experiência trágica sob o nazismo. Na década de 1970, ela não estava sozinha nessa preocupação. Naqueles anos, uma série de atentados e outros episódios mal esclarecidos ocorreram na Itália. As investigações, ainda que incompletas, revelaram o envolvimento de “órgãos de segurança” e grupos de extrema direita protegidos pelo sigilo de Estado. Foi então que o grande professor de filosofia política Norberto Bobbio escreveu uma série de artigos nos principais jornais italianos.

“Opacidade do poder é a negação da democracia”

Os textos de Bobbio foram reunidos num pequeno livro – “Democrazia e segreto”, que tem edição brasileira com o mesmo título. Num deles adverte: “Não existe democracia sem opinião pública, sem a formação de um público que pretenda ter o direito de ser informado das decisões que são tomadas em nome do interesse coletivo e de exprimir sobre elas sua própria crítica livre”. Outro termina de forma ainda mais enfática: “Isto [o sigilo sobre a ação dos “órgãos de segurança”] significa que o poder é opaco. E a opacidade do poder é a negação da democracia”.

A opacidade do poder é a negação da democracia porque, como diz Bobbio em outro momento, “Para que o homem que atinge a maioridade possa fazer uso público da própria razão é necessário que ele tenha pleno conhecimento dos assuntos do Estado”.

Voltamos ao ponto inicial: notícias falsas não são a única forma de tolher o processo democrático. Sonegar as verdadeiras pode ser ainda pior.

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