Dica da Semana

Dica da Semana 630 420 Instituto Palavra Aberta

os-fatos-_-foto-reproducaoPor Francisco Viana – Uma autobiografia insólita, que revela, em cinco episódios, as conexões entre a arte e a vida. Em Os fatos, o escritor Philip Roth consegue equilibrar os acontecimentos e a ficção, sem abdicar a sua narrativa criativa.

Logo nas primeiras páginas Philip Roth faz uma observação: “Embora eu não tenha certeza absoluta, me pergunto se este livro foi escrito devido à exaustão de criar lendas ficcionais sobre mim e como uma reação terapêutica espontânea ao meu colapso nervosa; talvez tenha sentido também como um paliativo pela perda de uma mãe que ainda hoje, morreu de forma inexplicável – com setenta e sete anos , em 1981 – assim como para criar ânimo enquanto me aproximo mais e mais de um pai com oitenta e seis anos que vê o fim da vida tão perto do seu rosto, quando o espelho diante do qual se barbeia …”

É possível que seja assim também. Mas tudo indica que ao tentar fazer uma biografia “sem disfarces”, ao escolher retratar “uma vida sem ficção”, como ele mesmo afirma, Roth traga à tona a tese de que a sua autobiografia é também uma ficção porque simplesmente passa para a forma com que ele viu e sentiu os fatos. Ao se reconstruir, diz ele, encontrou não um momento inicial, mas uma “história de origens múltiplas”, o que nunca tinha acontecido antes. Ele ressalta que mapeou a existência sem transformar as experiências, mas afirma, ao mesmo tempo, que os fatos são uma hipótese persuasiva. E o que é uma hipótese persuasiva são criação? Criação alicerçada em fatos, mas criação. Ou, simplesmente, o que são os fatos?

Philip Roth é um escritor que oscila entre Norman Mailer, com seu agressivo exibicionismo, e o retraído J.D. Salinger (Jerome David). Nessa posição intermediária, firmou-se com grande escritor norte-americano da segunda metade do século XX, escrevendo sobretudo sobre o autoconhecimento e o preconceito contra os judeus. De descendência judaica, nascido em Newark, Nova Jersey, em 1933, ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção com o livro Pastoral Americana (1998), parte de sua trilogia americana que se completa com Casei com um comunista (1998) e Complô contra a América (2004). E se destacou como escritor que escreve com arte, ironia e sofisticação.

Em sua autobiografia, ele volta aos seus temas recorrentes – o autoconhecimento e o preconceito contra os judeus – só que falando de si mesmo: sua família, seus tempos de universidade, seus amores… sua paixão pela literatura. E descreve o livro como sendo de “trás para frente”. Quer dizer, se toda a sua literatura começou com os fatos e resultou na ficção, agora a ficção teria sido o começo, desidratado de toda a ficção, para restaurar a experiência original, “a realidade pré-ficcional”, deixando os fatos falarem com liberdade.

Emblemático, que ele começa o livro escrevendo para seu alter-ego, protagonista de muitas das suas obras, Nathan Zuckerman, e termina com uma carta escrita por Zuckerman para ele, em que se lê: “Li o manuscrito duas vezes. Aqui vai a franqueza que me pediu: não publique, você fez muito melhor escrevendo sobre mim do que relatando “como exatidão” sua própria vida”. Será?

Valeu, porém, à pena publicar. Como diz Zuckerman, Roth “é um personificador”, alguém que equilibra entre os fatos e a ficção. Exatamente, o que transparece em Os fatos, onde ele se põe a nu, mas não abandona a criatividade narrativa. É mágico e imaginativo todo o tempo. Fica a pergunta para que tem por ofício lidar com os fatos: onde eles terminam e onde começa a ficção. O fato é o acontecimento. Mas seria só isso? O livro teria nascido de um colapso nervoso de Roth ou de uma sucessão de acontecimentos que levaram o autor ao esgotamento? Qual o seu real detonador? E o contexto, e os desdobramentos, e a percepção? São perguntas que a obras sugere nos seus bastidores e que não têm necessariamente uma resposta. Uma lição de rara utilidade para o jornalista e o leitor. Não deixem de ler, portanto, Os fatos. É, no mínimo, uma forma elegante e magnética de descrever a realidade. Ou reinventa-la. Com criatividade.

* Francisco Viana é jornalista e doutor em Filosofia Política (PUC-SP)

    Utilizamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossa plataforma. Ao continuar navegando, você concorda com as condições previstas na nossa Política de Privacidade.