Dica da Semana

Dica da Semana 630 345 Instituto Palavra Aberta

Enquanto-houver-champanhe-ha-esperança-_-ZozimoPor Francisco Viana – Enquanto houver champanhe, há esperança é a merecida biografia de Zózimo Barroso do Amaral, colunista no Rio de Janeiro, preso na ditadura duas vezes por cometer um único crime: publicar notinhas.

“O chefe da cela, o estudante Valter Bezze, foi o primeiro a ver. Tratava-se de Zózimo Barroso do Amaral, o elegante colunista social do Jornal do Brasil, o novo preso político enviado pelos militares para se juntar aos 50 que já estavam naquela cadeia. Era a noite de 2 de abril de 1969 no segundo andar do Batalhão da Polícia do Exército, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Chovia, um vazamento pingava num dos cantos, os trovões e relâmpagos pareciam sonoplastia de um filme de terror. Só faltavam os lobos uivando. O espanto revelado por Bezze, um dos organizadores da célebre Passeata dos Cem Mil pela avenida Rio Branco, no Centro, em junho do ano anterior, vinha de outro tipo de constatação. Não era filme de terror psicológico. Estreava o terror político.”

Assim começa a biografia de Zózimo Barroso do Amaral, Enquanto houver champanhe, há esperança, de Joaquim Ferreira dos Santos, um magnético relato sobre a vida do único colunista que a ditadura militar prendeu duas vezes por ter cometido um único “crime”, como registra o próprio autor do livro, “publicar notinhas nos jornais”.

Ao receber Zózimo na prisão, Bezze, estarrecido, disse o que parecia ser óbvio: “Os homens enlouqueceram! Eles agora estão prendendo a eles mesmo”. A paranoia que dominou o País após o AI-5 está condensada nessa frase e envolveu gente de todo o tipo que os militares julgavam subversivos, “nivelados pela ideia de querer derrubá-los do poder que haviam usurpado em 1964”.

Zózimo começa no jornalismo aos 22 anos (18 de dezembro de 1963) como repórter de assuntos da cidade do Rio de Janeiro: o aumento do preço dos legumes na feira, nascimento de girafa no zoológico, remoção da favela do Pasmado, buracos na Avenida Rio Banco, e por aí vai. Logo entediou-se e passou a auxiliar na redação da coluna de Carlos Swann, cujo nome era inspirado no protagonista de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust.
Zózimo deu certo. Como Jacinto de Thormes, pseudônimo do genial Maneco Muller do Diário Carioca, era da boa elite e tinha jeito para escrever. Vestia-se muito bem, com apuro, desde os temos do Colégio Santo Inácio, a “ Santa Sé do ensino religioso no Rio”, do Colégio Andrews, e do curso de Direito da PUC. Era de trato suave, tinha elegância natural, uma compostura nobre e inegável vocação jornalística. Apurava e escrevia bem. De auxiliar, passou a titular da coluna pelos seus méritos, e ganhou fama como o Carlos Swann da reportagem social. Reinventou o colunismo social, acompanhou as mudanças no poder e as novas tendências que surgiriam “depois da felicidade dos hippies se beijando na lama de Woodstock”. A revolução dos costumes queimava barricadas de Paris a Avenida Rio Brando. Zózimo tudo acompanhou. Era um liberal.

Quando houve a Passeata dos Cem Mil, Zózimo não estava nas ruas, mas nas festas das elites e naquele ano agitado integrou o cortejo do xá Reza Pahlevi, “recebido com casquinhas de siri na cobertura de Carlos e Heloisa Lustosa (na ocasião, usava um longo de musselina preto by Guilherme Guimarães)”. Foi também o ano em que Zózimo começou a negociar sua mudança para o Jornal do Brasil, o inesquecível JB, o que só ocorreria em fevereiro de 1969. Gaguejou na despedida com Roberto Marinho, mas teria o seu nome, um sonho, estampado no alto da coluna. O Globo não fazia isso. Cultuava a impessoalidade.

Enquanto-houver-champanhe-ha-esperanca-_-Contra-CapaO JB era o contrário. As colunas e reportagens eram assinadas. Tinha passado por uma grande reforma, pautada pela busca de qualidade editorial e gráfica, e “tornou-se um dos mais bonitos jornais do mundo”, recorda Ferreira dos Santos. Sua sede funcionava, então, na Avenida Rio Branco. Zózimo teria como missão ajudar a consagrar o jornal com “o espírito da cidade”, isto é, “independência e linguagem arrojada” em meio a respeitável concorrência. Duas dezenas de diários: O Globo, Correio da Manhã, O Dia, Tribuna de Imprensa, Jornal do Commercio, Última Hora –que agonizava, ao Diário de Notícias, apenas para citar os títulos mais relevantes.

Zózimo voltaria para O Globo, em 26 de junho de 1993, depois de mais de duas décadas para estrear a seção O Meu Rio, dando dicas de como viver a cidade e mostrar o Rio das celebridades. Mas se manteve fiel ao velho princípio de que “ o colunista é um jornalista como outro qualquer”.

No longo período em que permaneceu no JB transformou a champanhe, sua eterna companheira nas fotografias, alinhadas no Painel do Ego, um quadro de cortiça que decorava as paredes da sua sala, em símbolo da vida e da alegria. Ao lado das fotos, eram colocadas frases de todos os tipos. Uma delas, de autoria desconhecida, dizia: “Enquanto houver champanhe, há esperança.”

No final, assinala Joaquim Ferreira dos Santos: “A decadência assombrava a todos por todos os lados…” Estava nos problemas de saúde, nos embates profissionais e nas dívidas do JB. “Isto está parecendo a mansão dos Buddenbrooks”, dizia Zózimo referindo-se aos nobres e falidos personagens do escritor alemão Thomas Mann. Zózimo decepcionou-se com o País, acreditava que “varreram para debaixo do tapete o que o Brasil tinha de glamour e de charme” e um “insano processo de chinfrinização”.

Não poupava críticas às balas perdidas, lutou contra o câncer, deixou de beber, de fumar, purificou a mente em uma clinica no alto de Santa Tereza e em visita a Katmandu, capital do Nepal. Viveu até o dia 19 de novembro de 1997. A biografia escrita por Joaquim Ferreira dos Santos é imperdível. Mostra mais, muito mais, que a vida do colunista que revolucionou a coluna social. É um minucioso painel de época.

Traz para o centro da vida o homem, com seu humor, inteligência e muitas dúvidas; traz para o centro da vida também o jornalismo carioca, com seu extenso cortejo de personagens e criatividade. Zózimo fez um jornal dentro do jornal. Será possível dar continuidade a esse legado em um mundo dominando por notícias rápidas, onde as mídias tradicionais perdem espaço e leitores? Fica a questão para o futuro. Fica a boa leitura e as memórias de Zózimo.

*Francisco Viana é jornalista e doutor em Filosofia Política (PUC-SP)

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