Liberdade para escrever biografias + liberdade de expressão = democracia

Liberdade para escrever biografias + liberdade de expressão = democracia 150 150 Instituto Palavra Aberta

* Patricia Blanco

Sim. Liberdade para escrever biografias e liberdade de expressão são fatores que não podem ser separados da democracia. Se necessitam e se reforçam mutuamente.

Essa é a tese que temos defendido no Instituto Palavra Aberta, uma entidade sem fins lucrativos, que advoga a causa da plena liberdade de ideias, de pensamento e opiniões. Entendemos que a liberdade de informação caminha ao lado da capacidade da sociedade em melhor decidir, ser soberana e independente. Crescer e ter seu destino nas mãos.

Por estas razões, nosso posicionamento contra qualquer forma de censura está em harmonia com as garantias fundamentais estabelecidas de maneira clara e definitiva no art. 5º, incisos 4º, 9º e 14º e no art. 220, §1º e §2º. Em tais dispositivos, a Lei Maior prevê que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição e poderão ser divulgadas independentemente de censura ou licença.

Reza o artigo 5º, inciso IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”

Sendo assim, qualquer proibição ou necessidade de autorização prévia para publicação de uma biografia, de quem quer que seja, deve ser rechaçada. É, à luz do texto constitucional, uma forma de censura. No entanto, escrever uma biografia implica em responsabilidades. Responsabilidade com a história, responsabilidade com a objetividade dos fatos, responsabilidade com a coerência no registro de depoimentos, opiniões e contextos. Se existem erros ou equívocos, inverdades ou manipulações que possam incorrer em calúnia ou difamação do biografado, o autor responderá a posteriori. E estará sujeito às reparações que a Justiça vier a considerar justas.

Toda e qualquer tentativa de tolher previamente a liberdade de escrever é censurar e restringir a liberdade de manifestação, de criação e de pensamento. E principalmente, de restringir o acesso do cidadão a informação. Ponto este fundamental, pois obras como biografias trazem conteúdos simbólicos que ultrapassam o seu caráter comercial e retratam épocas e situações de interesse geral.

A reação contrária a liberação de biografias revela o fato de que o Brasil é um dos únicos países democráticos com restrições dessa ordem. A possibilidade de suspensão da distribuição de livros inibe escritores e editores a investir, com evidente prejuízo da pesquisa histórica e do resgate da memória.

Em todo o mundo, a biografia é considerada um gênero literário autônomo. É uma atividade historiográfica que independe do consentimento de personagens públicas, celebridades ou pessoas consideradas relevantes. Imagine se na Europa, por exemplo, alguém que escrevesse sobre uma vítima do Holocausto precisasse pedir autorização prévia ou pagar royalties aos carrascos nazistas? É inconcebível.

Aqueles que se revelam determinados a proteger sua intimidade ou reivindicar participação nos ganhos do autor e da editora, estão também impedindo qualquer outro trabalho relevante sobre personagens históricos.

Também, não podemos viver a situação autenticamente surrealista de ter de solicitar autorização às famílias de artistas, escritores e jogadores de futebol, entre outras, para que se possa escrever biografias. São situações em aberto conflito com os direitos assegurados pela Constituição de 1988. São realidades irreais sem quaisquer razão de existir.

Coincidentemente ou não, vale lembrar, o debate se materializa num momento em que a liberdade de expressão é ameaçada por toda a parte, dos Estados Unidos, onde grassam pressões sobre os jornalistas, à vários países da América Latina, sob alegações que vão do combate ao terrorismo à defesa contra os chamados linchamentos midiáticos.

Certamente isso acontece porque a história costuma regressar ao passado, mas os espelhos em que se olha não são sempre os mesmos. Em 23 de novembro de 1644, há exatamente 369 anos, John Milton, poeta e político, precursor da liberdade de expressão, elaborou um vigoroso ensaio de nome Areopagitica e, com isso, antecipou-se à defesa de uma prática que, no futuro, seria dominante nos países democráticos.

Tratava-se da liberdade de publicar livros sem a exigência do “deixem-no ser impresso”, imprimatur, em latim, para a autorização do imperador ou da autoridade eclesiástica, reconhecendo enfim, que naquelas páginas nada havia contra o regime ou a crença dominante.

Antes, o escrito passava pela censura para receber o nada contra ou nihil obstat.
Hoje, se pudesse renascer e fosse brasileiro, John Milton ficaria estarrecido com a discussão em torno da necessidade de autorização ou não para publicação de biografias.

Na época de Milton, a liberdade era uma quase ficção. Estava apenas nascendo. É esta liberdade o cerne do debate em torno das biografias, com uma diferença de fundo. A imagem no espelho do tempo é da democracia. Livros foram sempre alvos de ataques: queimados, censurados, destruídos, são vítimas de regimes fechados, não compatíveis com regimes abertos e democráticos.

Hoje, a censura está proibida no Brasil. A Constituição garante plena liberdade de expressão, inclusive cultural e artística. Por cláusula pétrea constitucional e por inspiração da sociedade, os livros ganharam a direção que sempre mereceram: são extensões da memória, são personagens constantes na história, como são inalienáveis o direito de escrevê-los, publicá-los e submetê-los ao livre julgamento da sociedade.

Evidentemente, nada é proibido de se discutir, mas um fato se afirma como irrefutável: a liberdade de expressão no Brasil é plena, não havendo espaço para qualquer forma de censura. E nossa Constituição é o reflexo perfeito dessa mudança dos tempos e das liberdades que a sociedade conquista e amplia.

Afinal, excesso de liberdade se combate com mais liberdade.

* Patricia Blanco – presidente do Instituto Palavra Aberta

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