Reflexões pós-carnavalescas, ou: O Estado quer lhe obrigar a ser feliz agora (pergunte-lhe como).

Reflexões pós-carnavalescas, ou: O Estado quer lhe obrigar a ser feliz agora (pergunte-lhe como). 150 150 Instituto Palavra Aberta

Claro que, dentro de limites, há espaço significativo ao Poder Público. Informar. Esclarecer. Sugerir. Raramente impor.

Por Jose Vicente Santos de Mendonça
Doutor em Direito Público (UERJ). Professor de Regulação do mestrado e do doutorado da Gama Filho (RJ). Advogado e procurador do estado (RJ)

Fac-símile do artigo publicado no Jornal O Globo – Caderno O País – 31/03/2011 (PDF)

O carnaval desse ano não foi igual ao do ano que passou. Vereadores cariocas proibiram as latas de espuma pressurizada. Alegaram que fazia mal e que a brincadeira invadia a privacidade alheia. Nada contra alertar a respeito de produtos nocivos. O problema é que não há certeza sobre a nocividade das espuminhas (são liberadas pela ANVISA), e, antes, a medida revela perigosa tendência de nossos administradores e legisladores: a pretensão de impor um padrão de vida boa. Há quem goste de bebida alcoólica.

Há quem goste de carnaval. Há quem goste de exercício. Há quem odeie tudo isso. Numa sociedade democrática, deve haver espaço para foliões, abstêmios, sedentários: desde que todos hajam feito escolhas conscientes, termina aí o papel do Estado. Ir além é violar o pluralismo das opções de vida; é reduzir a diversidade existencial a alguma platitude de conformismo e dentes brancos. E a questão é: por mais que tente, na maioria das vezes o Estado vai falhar. Ele não consegue reduzir as opções. Ele apenas torna as pessoas mais hipócritas.

E isso também por razões estratégicas: a verdadeira mudança nunca vem de fora para dentro. Ainda mais no Brasil, país gestado num caldeirão de miscigenação e antropofagia. Não precisamos importar modelos heterônomos de correção: temos os nossos, e poucos deles são normativos.

Há aspecto especialmente perverso nisso tudo: o estímulo à proibição do Outro. Se, antes, tentávamos negociar, administrar e tolerar diferenças, hoje já se curtocircuita a possibilidade de caminhos não-impositivos. Em algum tempo, o jeitinho brasileiro terá de conviver com o contra- jeitinho: as opções serão sempre ou o suborno malemolente ou a proibição talibã. Num país desigual, esquizofrênicas vêm sendo nossas reações diante das exigências postas pela convivência: ou fazer xixi na rua é uma bobagem, ou os mijões merecem cadeia.

Não há uma vida boa. Ninguém possui legitimidade para dizer que há. Daí que ninguém – legisladores, professores de ginástica, odiadores de hambúrgueres – pode pretender impor sua visão de mundo, quanto mais sob a forma de lei ou regulamento, de cumprimento obrigatório. Se o inferno são os outros, a pena só se paga com a aceitação da diferença. Contra as pretensões de perfeccionismo ético via legislação, a saída é cada um ser feliz à sua maneira. No espaço privado das opções de consumo e das visões de felicidade, cada banda toca de um jeito, e o bloquinho politicamente correto é apenas mais uma das agremiações possíveis. Espuma neles!

Fonte: O Globo, 31/03/2011

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