Decisão do STF sobre o Marco Civil da Internet fragiliza a liberdade de expressão, alerta Fernando Schüler, professor da Insper

Decisão do STF sobre o Marco Civil da Internet fragiliza a liberdade de expressão, alerta Fernando Schüler, professor da Insper 760 430 Instituto Palavra Aberta

*Crédito da imagem: Arquivo Pessoal

Um dia após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que as redes sociais das grandes empresas de tecnologia podem ser responsabilizadas por postagens de terceiros após notificação extrajudicial, Fernando Schüler, professor do Insper, em São Paulo, fez um alerta em entrevista exclusiva ao Instituto Palavra Aberta. Para ele, há um problema crucial na posição definida pela Suprema Corte, que, por 8 votos a 3, considerou o artigo 19 do Marco Civil da Internet parcialmente inconstitucional: “Mistura crimes bem-tipificados, em relação aos quais não há divergência, na sociedade, com o delito de opinião”. Na prática, prossegue o doutor em Filosofia e mestre em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), “trocamos um modelo garantista da liberdade de expressão por um modelo marcado pela incerteza e vulnerável à censura”.

No entendimento do professor da Insper, que também é criador e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento, cabe à sociedade definir qual o modelo de regulação, qual a extensão da liberdade de expressão, qual a forma de regular redes que deseja, a partir do amplo debate e decisão de seus representantes no Congresso Nacional. “E o Congresso não é obrigado a mudar uma lei, porque uma parte da sociedade, ou agentes do judiciário, acham que ela deva ser mudada. Esse conceito da omissão legislativa deve ser utilizado com muita cautela. Caso contrário, o Parlamento perde muito de seu sentido”, adverte.

Schüler defende ainda que magistrados não podem decidir por conta própria relativizar garantias constitucionais para “defender a democracia”, a partir de suas próprias opiniões sobre a democracia. “E é aqui que vejo um papel importante para a educação midiática, na sociedade. Isso porque ela ajuda a formar pequenas grandes lideranças da sociedade. Ajuda a formar bons jornalistas. Ajuda a formar estudantes com senso crítico, capazes de olhar para diferentes lados. Capazes de refletir, de ponderar”.

Segundo o professor, em algum momento, “precisamos voltar ao caminho da Constituição, da liberdade de expressão e das garantias individuais. É o único caminho para uma sociedade liberal. O tipo de sociedade que desenhamos na transição dos anos 80, e da qual em algum momento nos perdemos”.

Veja abaixo a íntegra da entrevista.

Instituto Palavra Aberta – O STF encaminhou sua votação, no âmbito do marco civil da internet, de inconstitucionalidade parcial do artigo 19 desta legislação. Os ministros apresentaram interpretações diferentes. O que isso representa para a nossa sociedade? Há benefícios nessa decisão para a liberdade de expressão? E quais são os riscos que ela também representa?

Fernando Schüler – Primeiro há uma questão institucional em jogo: a separação dos poderes. O artigo 19 não é inconstitucional. O que o Marco Civil da Internet fez foi traduzir uma visão do país sobre o modelo de regulação do espaço digital. O que o Supremo fez, ao derrubar parte da legislação, é definir um novo modelo regulatório da internet no Brasil, em especial das redes sociais. Um típico debate normativo que, se assim desejasse, deveria ser feito no âmbito do Congresso. Cabe à sociedade definir qual o modelo de regulação, qual a extensão da liberdade de expressão, qual a forma de regular redes que deseja, a partir do amplo debate e decisão de seus representantes.

Esta é exatamente a função do Parlamento. O debate no Supremo tratou de temas muito amplos, visões sobre a democracia, entendimentos distintos sobre a história da liberdade de expressão, citações de clássicos como John Stuart Mill e análises sobre a sociedade contemporânea. Tudo isso é perfeito e muito rico. Mas para um Parlamento. E o Congresso não é obrigado a mudar uma lei, porque uma parte da sociedade, ou agentes do judiciário, acham que ela deva ser mudada. Esse conceito da omissão legislativa deve ser utilizado com muita cautela. Caso contrário, o Parlamento perde muito de seu sentido.

O problema crucial da posição finalmente definida é simples: o “dever de cuidado” e a responsabilização atribuída às plataformas não distingue crimes como a pedofilia, terrorismo ou o racismo, dos delitos políticos, genericamente associados a “atos e condutas antidemocráticas. Penso que seja temerário, em uma democracia, e em especial à luz do que vivemos no País, nos últimos anos, atribuir a empresas privadas a juízo sobre a opinião politica das pessoas. Pois é disso que se trata. De modo que estamos diante de um duplo problema. O primeiro na forma: a ação legiferante da Suprema Corte, mudando o ordenamento institucional e normas básicas de nossa democracia à revelia do parlamento. A segunda, no mérito: trocamos um modelo garantista da liberdade de expressão por um modelo pautado pela incerteza e vulnerável à censura.

Vejamos: qual seria a ilegalidade do artigo 19? É evidente que há algum espaço para interpretação, no exercício do controle de constitucionalidade. Mas não se trata de um espaço ilimitado. Algo na linha: isso agride a dignidade humana, na minha visão, e logo é inconstitucional. Se as coisas forem assim, posso dizer que restringir o consumo da maconha agride a liberdade individual, que é essencial à dignidade humana, e logo a maconha pode ser liberada. Posso dizer que o marco temporal agride a história dos povos tradicionais, e que sua história é essencial a sua dignidade, e logo ele é inconstitucional. E posso dizer que o financiamento público de campanha é constitucional, e um tempo depois dizer o contrário. E por fim posso dizer o mesmo do presidencialismo. Que ele é inconstitucional, pois induz ao autoritarismo, e que é melhor para a democracia a visão do semipresidencialismo. Sejamos claros: isso foi feito em larga escala no Brasil recente. Ficamos mais de um ano sem a lei das estatais, a partir de uma decisão monocrática. Ainda agora mudamos a idade de aposentadoria das policiais mulheres, contra uma emenda constitucional aprovada no Congresso. Legislamos sobre drogas, Marco Temporal das terras indígenas, retiramos despesas do teto fiscal e um sem-número de decisões típicas de políticas públicas. Não me surpreende que isso seja feito agora com o tema da liberdade de expressão. Muita gente gosta desse modelo porque as decisões favorecem às suas posições. Mas não é assim que uma república deveria funcionar.

Instituto Palavra Aberta – Vamos usar um pouco os votos dos ministros André Mendonça, Fachin e Nunes Marques. Eles falaram em autorregulação. Seria um bom caminho? Como que seria o melhor caminho? Ou pelo menos abrisse caminho para reduzir algumas coisas bárbaras que acontecem nas redes sociais, crime sexual contra crianças, uma série de golpes que são aplicados… Como que a gente torna esse ambiente mais saudável e sem gerar censura, sem promover a censura

Fernando Schüler – A primeira coisa a fazer é estabelecer com clareza esta distinção. Todo o rigor no combate aos crimes bem tipificados, contra crianças, indução ao suicídio, drogas e tudo que diga a respeito à violência sexual e pornografia infantil. Isso tenderia a unificar progressistas e conservadores. Tenho participado desse debate há muito tempo. Usualmente pergunto isso para as audiências dos mais variados tipos, e não me lembro de nenhum caso em que alguém tenha levantado a mão e dito “sou contra”. Desde que isso não se confunda com o chamado “delito opinião”, pois isso não pode existir em uma democracia. Me refiro especificamente ao direito de opinião em matéria cultural, o humor, a opinião política, mesmo que forte por vezes “ofensiva”. E vale o mesmo para o campo religioso, comportamental, ético, ideológico e assim por diante. Podemos dar alguns exemplos: qualquer crítica às urnas eletrônicas será considerada crime? Isso faz sentido? Nós punimos o Prof. Marcos Cintra por causa de uma crítica amena a algumas urnas. Pode isso? As plataformas serão levadas a excluir qualquer postagem que sugerir o “voto auditável”? E os discursos de ódio? Como que o departamento jurídico de uma plataforma vai enquadrar milhões de postagens em conceito aberto como este? Dois exemplos: chamar um presidente de ladrão é discurso de ódio? Muita gente acha que é. A AGU, inclusive, processou deputados porque chamaram Lula de ladrão. Inclusive a Polícia Federal foi na casa de uma senhora que chamou Lula de ladrão.

Então quer dizer que chamar um político de ladrão é discurso de ódio? Chamar um presidente de genocida é discurso de ódio? Introduzir estas generalidades, no ordenamento jurídico do País, é como abrir uma caixa de Pandora. Vamos admitir uma série de critérios bastante abertos, no espaço do direito, e delegar a empresas a sua aplicação. Isso jamais poderia ser assim. Recentemente, o The Economist Intelligence Unit rebaixou a nota do Brasil no índice de democracia exatamente pelo uso de expressões vagas para punir pessoas. Isso está na base da censura praticada, no Brasil, nos últimos anos, e agora vamos expandindo este mesmo parâmetro para as plataformas privadas.

Se há um ensinamento que a história da liberdade de expressão oferece desde o século XVI, seja por John Milton, seja John Locke ou James Madison: a garantia da liberdade de expressão depende da objetividade do direito. Caso se amplie os critérios, com base em expressões vagas, o que se está fazendo, na verdade, é dar poder para os agentes do Estado. Para as pessoas que detêm o poder interpretar a norma. Quanto maior o espaço aberto à interpretação do direito, mais se abre o espaço à censura política, cultural ou ideológica. Ainda agora tivemos esse caso do Léo Lins. Quem decide o que é uma piada “não aceitável”? Cada juiz pode ter uma visão sobre isso. Que grupos na sociedade podem ou não serem satirizados? Possivelmente o Brasil vai entrar em uma situação muito difícil com essa nova regulamentação que deve sair do Supremo, uma guarda difusa e vaga da liberdade de expressão. A regulação, na prática, irá induzir as plataformas a agir com prudência, porque elas terão medo de uma futura responsabilização. Então nós vamos ter uma espécie de censura privada difusa feita pelas plataformas, a partir de critérios de natureza política. Isso não deveria acontecer. O Brasil ergueu sua democracia, nos anos 80, exatamente para que isto não acontecesse.

Instituto Palavra Aberta – Só pra gente terminar esse capítulo do STF. Os defensores da ideia de acabar com o artigo 19 colocam claramente que a sua preocupação é com o fato de que no atual sistema, o crime de pedofilia, por exemplo, pode demorar muito pra sair das redes, pela forma como a plataforma precisa ser notifica, tem de tempo pra tirar o conteúdo. E o mundo digital não funciona assim, funciona de modo cada vez mais rápido, ainda agora com a Inteligência Artificial. Considerando constitucional o artigo 19, mantendo constitucional e mantendo a legislação como nós temos, como que a gente poderia driblar este problema do tempo?

Fernando Schüler – Penso que não há problema em se introduzir o conceito de dever de cuidado, na regulação das redes. Ele está bem-posto no conceito de uma “responsabilidade sistêmica” das plataformas. O ponto central é: desde que se esteja tratando de delitos claramente tipificados. Nos debates do Supremo, foram citados a venda de metralhadoras e a indução ao suicídio infantil. Alguém tem algum problema de que as plataformas devam retirar imediatamente estes conteúdos? É claro que não. As plataformas podem apresentar modelos mais robustos de notificação de usuários etc. O problema é sempre o mesmo: quando isso escorrega para a censura política. Se o País estipulasse um veto rigoroso à censura política, ideológica, religiosa, de opinião, cultural e comportamental, boa parte do problema estaria resolvido. Um exemplo: pode censurar a Cláudia Leite, por mudar uma frase em uma música? Cabe ao Estado fiscalizar como alguém canta a letra de uma música? É crime no Brasil defender que um partido nazista tenha liberdade de expressão? Observe-se: não se trata de defender o nazismo, mas sim um princípio da Primeira Emenda americana. É crime isso? Claro que não. Mas foi punido, no Brasil. Outro exemplo: é crime dizer que prefere uma ditadura a este ou aquele candidato? É uma opinião equivocada, sem dúvida. Mas é crime? Então nós temos um claro problema com isso. Dou outro exemplo: é permitida a censura prévia no Brasil? Qualquer um sabe que não. Mas como então ela foi praticada em larga escala nos últimos anos? Na retirada daquele filme sobre a facada em Bolsonaro, na exclusão prévia de contas na internet, de ofício. No banimento de parlamentares, jornalistas, empresários.

Resolvido este tema, mesmo o modelo alemão pode nos ajudar. É perfeitamente plausível o sistema do “notice and take down” para crimes de pedofilia, por exemplo. Ou terrorismo e tráfico de drogas. As próprias plataformas já têm, e podem aperfeiçoar seus mecanismos de moderação. O Brasil tem uma longa experiência com a autoregulação publicitária. E se poderia avançar nesta direção, no espaço digital. Nada disso contradiz o artigo 19. Nada disso é controverso na sociedade. O problema é que há o desejo de muitas pessoas, infelizmente, de realizar a censura política.  E não vamos nos iludir: isto afetará também o jornalismo profissional. Como já afetou, no Brasil recente. Como as plataformas vão julgar se um jornalista contextualizou bem ou mal uma informação? Recentemente a jornalista Rosane de Oliveira, com 40 anos de profissão, foi multada em R$ 600 mil por supostamente “distorcer” uma informação perfeitamente verídica. E A AGU mandou multar um documentário sobre o julgamento de Maria da Penha. É este o padrão que desejamos estabelecer no País? Vale o mesmo para expressões vagas, como “ideologias fascistas ou odiosas”. O que significaria isso exatamente?

Instituto Palavra Aberta – Há o problema da polarização descontrolada, vamos dizer assim. Eu já vi você chamar de espiral de polarização, mas a gente já entra nisso. Eu primeiro queria ouvir sobre esse caso do Léo Lins. De fato, ele usa um tipo de humor sistemático contra situações que podem ser consideradas crime. Mas como alguém pode ser condenado por oito anos por ter feito humor? O caso nos faz lembrar do jornal satírico francês o Charlie Hebdo que, lá em 2015, publicava de forma sistemática charges brincando ou debochando com Alá, criticando o Islamismo. E todo o mundo ocidental condenou o ataque terrorista à redação do jornal, como tinha que ser mesmo. O mundo mudou muito de lá pra cá? A gente se perdeu? O que podemos entender como humor? Como interpretar essa punição ao Léo?

Fernando Schüler – Nós vivemos há bom tempo em um refluxo da ideia de liberdade de expressão. Isso atinge os dois extremos da guerra cultural atual: o conservadorismo de costumes, de um lado, e a ideologia woke, de outro. Esta última é mais invasiva. Penetrou nas empresas, nas universidades, na cultura. A obsessão em torno de temas de gênero, raça e orientação sexual. Na prática, a lógica dos grupos de pressão. O caso do Léo Lins é um exemplo típico. Veja-se como é curioso. Ninguém dá muita bola para piadas sobre pessoas idosas. Ninguém processa ninguém. A internet está forrada de piadas sobre Roberto Carlos, porque está muito velho. “Descongelaram o Roberto!”, e coisas assim. Alguém se importa? Velhos não são vulneráveis? Não são um tipo de identidade? Quem define isso? Quem diz quais os grupos que não podem ser ridicularizados? Haveria algum ranking dos grupos que se deve proteger? Tempos atrás, conheci um grupo de meninas muito altas, chamadas de meninas-girafa, que não queriam ser ridicularizadas. Então fica a pergunta: pode contar a piada de meninas-girafa? Ou deveríamos mandar o piadista para a cadeia, como o Léo Lins?

O ponto é simples: se formos neste caminho, vamos terminar em uma enorme seletividade. Certos grupos serão protegidos se tiverem capacidade de pressão. Os sem lobby vão continuar sendo ridicularizados. É por isso que a liberdade de expressão é uma boa solução. Uma solução imperfeita. Mas a menos imperfeita entre muitas soluções imperfeitas. Entre outras razões, porque ela evita que a sociedade viva permanentemente em guerra. Em guerra por essas questões. Para definir a linha de corte, para definir quem julga e para controlar o julgador. Uma sociedade liberal resolve essas coisas de modo simples: quem não gosta das piadas do Léo Lins não vai ao seu show. Decide por conta própria não assistir ao seu vídeo. Mas não admite que o Estado tome essa decisão em nome das pessoas. Essa é a questão central. Você quer ter o direito de decidir não assistir certos tipos de piadas, peças teatrais ou exposições de artes ou você quer que o Estado diga aquilo que você pode assistir ou não? Essa é a pergunta. Eu não gostaria de viver numa sociedade onde o Estado tomasse essa decisão por mim. Agora, é evidente que não há consenso na sociedade sobre isso. Muita gente parece ter o desejo de viver em uma sociedade vigiada. Talvez por acreditar que existirá um bom ditador decidindo sobre essas coisas. Sobre o humor, o teatro, o cinema, os livros e o jornalismo. De minha parte, acho isso uma péssima ideia. E só há uma forma, no fundo, de evitar um mundo distópico como este: a decisão sobre aquilo que é apropriado ou não, de bom gosto ou não, ofensivo ou inofensivo deve ficar nas mãos das pessoas, e não do Estado.

Eu acho que o lado positivo desse caso, do Léo Lins, é que mostrou o lado bizarro da censura cultural. Porque o Brasil acabou virando manchete no mundo inteiro. Nós talvez sejamos a única democracia no mundo que pune um humorista a oito anos de cadeia. Isso é inédito. Isso é a tal da ladeira escorregadia, você abre a porta para a censura e ela vai crescendo. Se deixar essa porta aberta, se essa visão não for reformada, se isso virar uma jurisprudência de um país tropical, abençoado por Deus, que teve o Casseta e Planeta, que teve o Nelson Rodrigues, que fez o Chico Anysio, o Jô Soares, os Trapalhões, um país alegre e divertido de Carnaval, de descontração, nós vamos virar um país muito estranho. Na melhor hipótese, um País puritano. De qualquer forma, um País muito chato.

Instituto Palavra Aberta – Voltando a essa questão da polarização. Antes, lá no comecinho da nossa conversa, você lembrou que o Parlamento é feito de senso a partir do dissenso, para se buscar um consenso. Eu acho que a busca pelo consenso, que às vezes não acontece, é uma característica muito salutar da democracia. Acho que a gente nesse processo de polarização radicalizada, há grupos que simplesmente se destratam, não conversam, ou se xingam. Como é que nos transformamos em uma sociedade assim? Como fugimos disso?

Fernando Schüler – Eu diria assim. James Madison, que foi o principal autor da Constituição americana, um dos maiores teóricos da política moderna. Tem uma frase que ele dizia, escrito no chamado Virginia Report, em 1800: “A República é o regime da animaversão, animadversion. Animaversão é uma palavra muito pouco utilizada. Ela diz respeito ao debate duro na sociedade. A censura dos cidadãos sobre as autoridades, através das palavras. A crítica aguda, por vezes mesmo odiosa. Madison dizia que isso é da natureza da república. Os Estados Unidos na época também era um país de boquirrotos. Agora temos a era digital, com milhões de boquirrotos. O destino de uma sociedade republicana, onde milhões de pessoas têm direito à palavra, é o ruído permanente. Seria desejável que as pessoas fossem mais bem-educadas, mas isso não é uma condição para o funcionamento da democracia. E em um ambiente digital é perfeitamente ilusório.

O ambiente digital tem uma marca, é a baixa empatia. Porque na internet, todos nós somos distantes. Todos nós falamos de maneira muito rápida e pouco reflexiva. Tendemos a um comportamento tribal. Tem muito estudo acadêmico sobre isso. Inclusive, estudos mostram que se você fizer uma postagem adversarial, uma postagem negativa, uma crítica dura, ela tem muito mais capacidade de engajamento do que uma postagem reflexiva e positiva. É um incentivo até de mercado para que as pessoas sejam, digamos assim, mais radicais no espaço digital. Esse problema não tem solução. O que penso que devemos exigir é que as pessoas que cumprem funções de Estado, em especial no Judiciário, ajam com prudência e imparcialidade. Quanto mais dura a competição, mais isento deve ser o juiz. O problema é que o passionalismo que toma conta da sociedade acaba penetrando nas próprias instituições. E aqui volta-se a um velho tema de John Milton: quem nos proteja da falibilidade dos juízes? De suas opiniões sobre a justiça e a política, que por vezes supõem que devam regular a “grande sociedade”? Dizendo de um modo simples: juízes e autoridades de Estado não podem entrar em jogo. Não podem decidir por conta própria relativizar garantias constitucionais para “defender a democracia”, a partir de suas próprias opiniões sobre a democracia. E é aqui que vejo um papel importante para a educação midiática. Isso porque ela ajuda a formar lideranças da sociedade. Ajuda a formar bons jornalistas. Ajuda a formar cidadãosom senso crítico, capazes de olhar para diferentes lados. Capazes de refletir, de ponderar. Isso, claro, se a própria educação midiática não terminar, ela mesma, enviesada.

No mais, o Brasil vive um momento muito difícil. Por vezes me pergunto: queremos de fato viver em uma democracia liberal? Intuo que boa parte da sociedade não quer. Queremos viver em um País no qual o governo, através da AGU, use a máquina do Estado para processar uma produtora de vídeo por ter, segundo a visão do próprio governo, distorcido informações sobre a história do Brasil em um vídeo? Foi exatamente o que aconteceu com a ação da AGU em relação ao documentário sobre o julgamento da Maria da Penha. Aceitar isso significa aceitar que, daqui a alguns anos, um governo do lado político oposto poderá usar o Estado para processar uma produtora que igualmente lhe desagrade. E aí temos o inferno. Então, de novo, digo que estamos em um momento muito difícil. Em algum momento, precisamos voltar ao caminho da Constituição, da liberdade de expressão e das garantias individuais. É o único caminho para uma sociedade liberal. O tipo de sociedade que desenhamos na transição dos anos 80, e da qual em algum momento nos perdemos.

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