Violência a jornalistas após eleição não tem paralelo na história democrática brasileira

Violência a jornalistas após eleição não tem paralelo na história democrática brasileira 1024 682 Instituto Palavra Aberta

Levantamentos feitos pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) indicam que houve uma escalada na violência contra jornalistas após o segundo turno das eleições deste ano. Dezenas de equipes jornalísticas foram alvo de agressões verbais ou físicas durante a cobertura de atos deflagrados no país após a derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas eleições. Diante das agressões, Abraji, Fenaj e outras entidades, entre elas o Instituto Palavra Aberta, se uniram em um manifesto que pede às autoridades maior proteção aos profissionais de imprensa.

Em entrevista ao site do Palavra Aberta, a presidente da Abraji, Katia Brembatti, disse que o que se viu nos dez dias posteriores ao segundo turno não tem paralelo na história democrática brasileira. “Nos 20 anos da Abraji, a gente nunca teve uma semana com tantos casos de agressões como tivemos no período após o segundo turno”, afirmou a jornalista. Confira abaixo a entrevista completa levemente editada.

Palavra Aberta – Estávamos esperando uma escalada de agressão a jornalistas durante o período eleitoral, mas o que se viu foi um aumento nas agressões após o pleito. Que fenômeno é este?

Katia Brembatti – Estávamos nos preparando há mais de um ano para o período eleitoral. A gente faz um acompanhamento dos dados e via que, mês a mês, a coisa se agravava. Então, nossa leitura de conjuntura era de que o período eleitoral iria ser bastante acirrado. Por isso, fizemos uma série de preparações com relação a prevenções, das questões de segurança física, das questões de segurança digital, de assédio judicial. E o período eleitoral não foi grave se a gente fizer um paralelo com uma normalidade. Foi anormal, é verdade, porque não se guiou pelas regras da civilidade, mas foi menos tenso que a gente achou que poderia ser. Temíamos mortes. Abrindo aqui muito claramente: a gente temia mortes. Tivemos casos graves de agressões físicas, mas a gente temia agressões mais graves. A gente teve o caso do Dom Phillips do Bruno Pereira (assassinados em junho), que não estavam relacionados diretamente a questões eleitorais, embora estejam relacionados a questões de política e macropolítica. Então, quando passou o dia do segundo turno da eleição e a gente sobreviveu, a gente pensou: ufa! Não sei se as nossas atitudes preventivas deram resultado ou se, que bom, não foi tão grave quanto a gente previa. Mas o que aconteceu depois do dia 30 de outubro é um reflexo de tudo que estava acontecendo antes e não estava no nosso radar. Não é que achássemos que o mundo iria virar um lugar colorido, cheio de arco-íris, depois da eleição. Sabíamos que haveria reações, mas não sabíamos que elas seriam tão direcionadas à imprensa. A gente imaginou que elas fossem mais pulverizadas e nem tão volumosas. Então, o que a gente viu nos dez dias posteriores ao segundo turno não tem paralelo na história democrática brasileira. Nos 20 anos da Abraji, a gente nunca teve uma semana com tantos casos de agressões como tivemos no período após o segundo turno. Nem nas jornadas de 2013, nem nas manifestações do Impeachment (da presidente Dilma Rousseff), em nenhum momento a gente teve mais de 50 casos de algum tipo de agressões a jornalistas em um período tão curto de tempo.

Palavra Aberta – De onde vêm essas agressões?

Katia Brembatti – É um processo complexo. É possível apontar alguns responsáveis, mas também é preciso analisar uma questão conjuntural. Os dados mostram claramente que o processo de descredibilização da imprensa no Brasil, embora não seja um processo exclusivamente brasileiro, vem se intensificando desde 2013. A partir dali os dados, as pesquisas, mostram que o índice de confiança no trabalho jornalístico vem caindo. Não é que a imprensa seja 100% correta e essa confiança seja desmedida. Sempre existiu um pouco de desconfiança na imprensa. O que acontece é que hoje isso é resultado de um processo estratégico que visa tirar da imprensa esse lugar de ser um agente que incomoda a quem está no poder… a imprensa sempre teve este papel de ser fiscalizador do poder público, de mostrar o contraponto, de trazer senso crítico à tona. O que acontece: quando você faz um trabalho sistemático de culpabilizar a imprensa, dizer que a imprensa está fazendo isso por este ou aquele motivo, que ela é vendida, que faz isso ou aquilo… você vai minando esse espaço que a imprensa ocupa. Então, isso foi um processo de longo prazo que começou muito claramente em 2013 e foi aumentando mês a mês, ano a ano. Além disso, a gente sempre teve governos com tons autoritários. Eu estou aqui no Paraná, e este foi o caso de Roberto Requião, que era bastante agressivo com a imprensa. Então, isso não chega a ser uma novidade no Brasil. O que é uma novidade e o que a gente viveu nos últimos 4 anos foi um presidente da República que ocupa um espaço privilegiado, tendo um lugar de fala no qual representa a nação brasileira e tem um grupo que o segue, nos qual ele sistematicamente agride a imprensa desde as coisas mais simples, do dia a dia, até as coisas mais complexas em uma coletiva de imprensa, inclusive se inspirando em líderes de outro país, como é o caso de Donald Trump (ex-presidente dos Estados Unidos), que também tinha uma postura agressiva contra a imprensa. O que a gente percebeu muito claramente é que até as atitudes do (Jair) Bolsonaro tinham um efeito em cascata, gerava uma onda de agressividade. Então, passou a ser bonito, passou a ser mérito para algumas pessoas agredir a imprensa, vendo o exemplo do governante. E isso reverberou muito claramente quando ele perdeu a eleição. Quando começaram as manifestações, a imprensa não era bem-vinda e, mais do que isso, na visão desses manifestantes, ela tinha de ser expulsa, tinha de ser agredida.

Palavra Aberta – Você acha que a imprensa se contaminou com a lógica da política polarizada que tomou conta do país?

Katia Brembatti – Primeiro a gente deve evitar, isso eu aprendi com meu colega Guilherme Amado, o termo polarização, que acaba passando a mensagem de que as coisas são equivalentes, quando na verdade elas não são equivalentes. Embora haja agressividade do outro lado da ponta nos dois extremos, elas não são proporcionais. A agressividade foi muito mais grave pelo lado da direita. Então, ao invés de polarização, talvez seja melhor falar em clima de ódio. E acho que, sim, a imprensa foi contaminada, mas há quem diga que não havia muita escolha. Um outro colega meu diz assim: momentos extremos levam a medidas extremas. Um paralelo: durante a pandemia, quando algumas desinformações sobre vacinas ou o vírus mesmo estavam literalmente matando pessoas, a imprensa teve que deixar aquela postura mais “isentona” para dizer: olha, fulano está mentindo quando diz que tal coisa resolve. Tivemos de ir para um lugar muito mais combativo que, aliás, não é um lugar que a gente gosta muito ou a maior parte da imprensa não gosta muito. Eu, particularmente, gosto de trabalhar com informação, sou uma jornalista de reportagem; eu não faço texto de opinião, por exemplo. Mas chegou em um ponto, durante a pandemia, que a imprensa teve que sair deste lugar de conforto de só levar dados e fatos e dizer, olha, não é bem assim… E quando a gente começou um processo deste ano, que já vem desde a eleição passada, de ameaçar deslegitimar a eleição, de acionar as Forças Armadas, de começar a criar uma narrativa antidemocrática, o que aconteceu é que a gente teve de colocar em prática nosso código de ética, que diz muito claramente o que é que a gente defende. E uma das coisas que a gente defende é a democracia. Então, não existe jornalista, ou não deveria haver jornalista, que agisse sem estar pautado por esses princípios éticos. Então, a gente foi chamado a dar uma resposta para além de fatos e dados para contrapor um discurso que era contrário ao nosso código de ética.

Palavra Aberta – O modelo de negócios digitais, liderado pelas grandes empresas de tecnologia, se apresenta de forma negativa ao jornalismo?

Katia Brembatti – Para a gente, tudo isso é muito novo e a gente precisa ainda entender limites nesse mundo novo. Então assim, o que é livre mercado, o que é iniciativa empresarial, o que é que a pessoas, empresas, empresário tem direito a fazer e o que é regulação, que tem em todas as áreas, sei lá, na medicina tem regulação. Se eu criar um remédio, por exemplo, eu vou ter te passar por uma série de procedimentos. A gente ainda está traçando quais são esses limites. O PL 2630, por exemplo, que está em discussão no Congresso Nacional, é um desses lugares de debate que a gente vai ter de sentar e colocar em prática uma coisa que a gente sempre fala que é debater com a sociedade e considerar que algumas dessas pessoas que estarão sentadas na mesa tem interesses econômicos, algumas dessas pessoas têm interesse políticos-eleitorais e algumas pessoas estão olhando e dizer que sociedade melhor a gente pode construir colocando quais regras. Então, algumas coisas precisam ser controladas, outras é um risco maior deixar que o estado, controle, por exemplo.   A gente vai ter de pegar ponto a ponto dessas questões a analisar caso a caso.

Palavra Aberta – O discurso de ódio não vem sendo maquiado de liberdade de expressão?

Katia Brembatti – Propositadamente e estrategicamente algumas pessoas usam o discurso da liberdade de expressão, princípio que todos nós deveríamos defender, para dizer que estão sendo censurados, que estão sendo tolhidos, mas qual é essa censura, qual é essa liberdade de expressão que foi, entre aspas, tolhida? É ofender? É criminalizar uma parte da sociedade? É tentar tirar do debate uma parte da sociedade? A liberdade de expressão, como qualquer outra liberdade, não é ilimitada. Por exemplo, eu tenho liberdade de ir e vir, mas há lugares onde eu não posso ir. Eu não posso entrar em um presídio e resgatar um preso. Eu tenho liberdades, mas não posso interferir nas liberdades alheias. Então, o que tem acontecido é uma apropriação desse discurso da liberdade de expressão por quem na verdade quer cometer crimes. E o que nós devemos fazer é mostrar claramente que aquilo que a pessoas estão dizendo que é sua liberdade na verdade é uma ilicitude. Não é que não estão deixando expressar, não estão deixando ofender, não estão deixando colocar em risco o sistema democrático. Existem regras e essas regras precisam ser cumpridas

Palavra Aberta – Houve mais recentemente um recuo nas leis de transparência?

Katia Brembatti – Eu sou jornalista há 20 anos, então eu tenho memória do que era ser jornalista antes das leis de transparência. Era muito ruim. Lembro que pedi várias vezes para a Assembleia Legislativa do Paraná quantos funcionários eles tinham e eles não me respondiam. Hoje, teoricamente eu sei quem são, onde trabalham, quanto ganham. Nós ganhamos muito a partir dos portais de transparência, a partir da Lei de Acesso à Informação (LAI), a partir de várias outras iniciativas, de fortalecimento da CGU (Controladoria Geral da União), a gente ganhou muito, mas precisamos avançar muito mais. Eu tenho um pouco de dificuldade em dizer que a gente tenha retrocedido na transparência, pois não posso negar que nesses dez anos LAI as coisas melhoraram em relação a 2011, 2012 e 2013. Até foram dados alguns passinhos para trás no governo federal. Por exemplo, eu fiz um relatório este ano sobre como a LGPD tem sido usada para negar pedidos de lei de acesso, essa é uma estratégia que alguns atores do governo federal têm usado para negar pedidos de LAI. Mas o que a gente tem de fazer é olhar para isso de um jeito macro. A LAI e o portal da transparência do governo federal são relativamente bons. Tem muita coisa para melhorar sim, mas como está a lei de acesso nas prefeituras, como está a transparência nas prefeituras? É muito precário, então a gente tem de olhar mais para a esfera municipal, e a gente só vai ter essa cultura de transparência quando ela for diluída em toda a sociedade.

Palavra Aberta – Como o jornalismo pode ajudar mais na educação midiática?

Katia Brembatti – Eu aplico uma disciplina chamada autocrítica jornalística e educação midiática na faculdade onde eu dou aula. Estou olhando para isso do ponto de vista da academia. Existem várias iniciativas de veículos de comunicação, de escolas, projetos de educomunicação… a educação midiática agora é até parte curricular do ensino médio, ainda em fase muito inicial de implantação. A gente precisa se inspirar, por exemplo, na França, onde a sociedade tem muito claramente qual que é o papel da imprensa e entende como as coisas são feitas. Pesquisa mostra que quase 70% dos jovens de 15 anos não conseguem diferenciar um fato de uma opinião. Ou seja, nós jornalistas estamos inclusive falhando em conseguir mostrar se o que a gente está apresentando para o público é fato ou é opinião. O Projeto Credibilidade do Projor, por exemplo, é uma iniciativa que mereceria mais atenção, pois inclusive coloca quais são os indicadores e quais são os procedimentos para deixar mais claro isso. Acho que a educação midiática é muito importante, mas ainda está muito no começo.

 

 

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