Mesmo sem citar nomes, jornalista é condenado por publicar crônica

Mesmo sem citar nomes, jornalista é condenado por publicar crônica 150 150 Instituto Palavra Aberta

”Dia desses fui contrariado porque alguns fizeram greve e invadiram uma parte da cozinha de uma das Casas Grande. Dizem que greve faz parte da democracia e eu teria que aceitar. Aceitar coisa nenhuma. Chamei um jagunço das leis, não por coincidência marido de minha irmã, e dei um pé na bunda desse povo”.

O trecho de um texto de ficção escrito pelo jornalista José Cristian Góes, de Aracaju, e publicado em maio de 2012 no blog de Góes no site Infonet (www.infonet.com.br), acabou fazendo com que o jornalista fosse condenado no último dia 4 por crime de injúria, em ação movida no Juizado Especial Criminal de Aracaju pelo desembargador Edson Ulisses. O jornalista foi condenado em primeira instância a sete meses e 16 dias de detenção, pena que foi convertida em prestação de serviços em entidade assistencial. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) classificou a condenação de ”absurda” e ”surrealista”.

Na crônica, intitulada ”Eu, o coronel em mim”, José Cristian Góes escreve em primeira pessoa sobre o coronelismo, como se ele próprio fosse um coronel — e não cita nomes, datas, cargos ou locais. Na ação, o desembargador Ulisses, que é vice-presidente do TJ de Sergipe, acusa o jornalista de injúria, pois o texto ”deu a entender”, como diz a sentença, que a expressão ”jagunço das leis” seria uma referência a ele, Ulisses.

 

Leia abaixo a crônica do jornalista José Cristian Góes:

Eu, o coronel em mim
Mando e desmando. Faço e desfaço

Por José Cristian Góes *

Está cada vez mais difícil manter uma aparência de que sou um homem democrático. Não sou assim, e, no fundo, todos vocês sabem disso. Eu mando e desmando. Faço e desfaço. Tudo de acordo com minha vontade. Não admito ser contrariado no meu querer. Sou inteligente, autoritário e vingativo. E daí?

No entanto, por conta de uma democracia de fachada, sou obrigado a manter também uma fachada do que não sou. Não suporto cheiro de povo, reivindicações e nem com versa de direitos. Por isso, agora, vocês estão sabendo o porquê apareço na mídia, às vezes, com cara meio enfezada: é essa tal obrigação de parecer democrático.

Minha fazenda cresceu demais. Deixou os limites da capital e ganhou o estado. Chegou muita gente e o controle fica mais difícil. Por isso, preciso manter minha autoridade. Sou eu quem tem o dinheiro, apesar de alguns pensarem que o dinheiro é público. Sou eu o patrão maior. Sou eu quem nomeia, quem demite. Sou eu quem contrata bajuladores, capangas, serviçais de todos os níveis e bobos da corte para todos os gostos.

Apesar desse poder divino sou obrigado a me submeter à eleições, um absurdo. Mas é outra fachada. Com tanto poder, com tanto dinheiro, com a mídia em minhas mãos e com meia dúzia de palavras modernas e bem arranjadas sobre democracia, não tem para ninguém. É só esperar o dia e esse povo todo contente e feliz vota em mim. Vota em que eu mando.

Ô povo ignorante! Dia desses fui contrariado porque alguns fizeram greve e invadiram uma parte da cozinha de uma das Casas Grande. Dizem que greve faz parte da democracia e eu teria que aceitar. Aceitar coisa nenhuma. Chamei um jagunço das leis, não por coincidência marido de minha irmã, e dei um pé na bunda desse povo.

Na polícia, mandei os cabras tirarem de circulação pobre, preto e gente que fala demais em direitos. Só quem tem direito sou eu. Então, é para apertar mais. É na chibata. Pode matar que eu garanto. O povo gosta. Na educação, quanto pior melhor. Para quê povo sabido? Na saúde… Se morrer “é porque Deus quis”.

Às vezes sinto que alguns poucos escravos livres até pensam em me contrariar. Uma afronta. Ameaçam, fazem meninice, mas o medo é maior. Logo esquecem a raiva e as chibatadas. No fundo, eles sabem que eu tenho o poder e que faço o quero. Tenho nas mãos a lei, a justiça, a polícia e um bando cada vez maior de puxa-sacos.

O coronel de outros tempos ainda mora em mim e está mais vivo que nunca. Esse ser coronel que sou e que sempre fui é alimentado por esse povo contente e feliz que festeja na senzala a minha necessária existência.

* José Cristian Góes é jornalista profissional, servidor federal INSS, especialista em Gestão Pública (FGV/Esaf) e Gestão de Crise (Gama Filho). Foi secretário de Comunicação da prefeitura de Aracaju e presidente do Sindicato dos Jornalistas.

 

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