A “superindústria do imaginário” pressiona os índices de liberdade de expressão

A “superindústria do imaginário” pressiona os índices de liberdade de expressão 1024 682 Instituto Palavra Aberta

📸: Renato Parada | Editora Companhia das Letras

Não é a tecnologia que reduz os índices de liberdade de expressão, mas sim as relações de propriedade dos equipamentos e desses meios de produção – a superindústria do imaginário. A afirmação é de Eugênio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em entrevista ao site do Instituto Palavra Aberta. “Esta conexão existe e em parte ela vai abater a liberdade de expressão. Mas não é a tecnologia a vilã dessa história, mas sim as relações de propriedade em torno das inovações tecnológicas e algumas características discursivas que fizeram com que essas tecnologias tivessem aplicativos e funcionalidades mais eficientes nas mãos de correntes de extrema-direita antidemocrática”, destaca Bucci. Confira abaixo a conversa levemente editada.

Palavra Aberta – Em uma realidade na qual a tecnologia avança de forma acelerada, a liberdade de expressão está em risco?
Eugênio Bucci – A liberdade de expressão está em risco especialmente nos países ditos democráticos onde havia um patamar conhecido de liberdade de expressão. As democracias estão sofrendo muito nesse período e isso vem aparecendo em diversos indicadores sobre a qualidade da democracia e da liberdade de expressão. Há uma consistência muito grande nestas medições baseadas em indicadores objetivos apontando declínio da democracia, em um recrudescimento de forças autocráticas. O que se registra é que, por dentro dos processos decisórios de países democráticos, as sociedades escolhem líderes que antagonizam com a democracia. Os casos mais citados são o da Hungria, Brasil, Rússia e Turquia. É importante a gente entender que estamos aqui descrevendo um processo político, não um processo tecnológico. A tecnologia atua aí, sem dúvida nenhuma, mas não é a tecnologia que derruba a liberdade de expressão; são as relações de propriedade dos equipamentos e desses meios de produção – o que eu chamo de superindústria do imaginário. É a conexão discursiva entre o modo de operar das plataformas sociais e de sites de entretenimento – ferramentas, portais, ambientes, aplicativos – e algumas características de discursos de viés autoritário. Esta conexão existe e em parte ela vai abater a liberdade de expressão. Mas não é a tecnologia a vilã dessa história, mas sim as relações de propriedade em torno das inovações tecnológicas e algumas características discursivas que fizeram com que essas tecnologias tivessem aplicativos e funcionalidades mais eficientes nas mãos de correntes de extrema-direita antidemocrática.

Palavra Aberta – Por isso é preciso regrar as plataformas? Como fazer isso sem minar a liberdade de expressão?
Bucci – Este é um debate que está na ordem do dia de diversos países democráticos, a começar pela União Europeia (UE), Estados Unidos e, incrivelmente, isso é uma agenda prioritária na China, que não é um país democrático. Em todos estes lugares o Estado percebe uma disfunção, uma hipertrofia do poder e da concentração de capital e concentração de tecnologia dos conglomerados (as big techs), muitas vezes monopolistas. É claro, portanto, que isso precisa passar por um enquadramento e por uma regulação, não há dúvidas sobre isso. O que se discute é o alcance e o objeto dessa regulação – ou deve ter um foco na emergência de monopólios ou de prática monopolistas ou ela deve alcançar também uma regulação de conteúdos e em que medida. Esta é a discussão. E o fato de isso estar em discussão nos países democráticos é uma notícia positiva porque essas democracias perceberam a gravidade do tema. Mas esse processo é lento, e a tecnologia e o capital são muito velozes. A lentidão é uma virtude da justiça – a justiça não pode ser muito rápida –, mas neste caso a lentidão pode ser um problema porque se for lenta demais as democracias serão atropeladas. Esta é uma tensão que está posta.

Palavra Aberta – Como estabelecer limites entre o discurso de ódio e a liberdade de expressão. Como coibir o primeiro sem prejudicar o segundo?
Bucci – A tensão entre a liberdade de expressão e a garantia de direitos fundamentais é uma tensão constitutiva dos ambientes democráticos. Ela sempre esteve aí. A gente sempre falou muito da tensão entre liberdade de expressão e direitos da pessoa ou da privacidade ou da honra. É uma tensão que sempre esteve aí. Não é muito profícua a via de pensar esta tensão como um limite da liberdade de expressão. Eu não vejo muito fundamento em falar “a liberdade de expressão existe, mas ela tem limites”. Tudo tem limite, por definição. A questão é que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa na organização dos direitos fundamentais precedem os demais. Vamos lembrar que a declaração universal dos direitos humanos tem no seu primeiro adjetivo a palavra “livre”. Todos os seres-humanos nascem livres e iguais em direitos de dignidade. A liberdade é o ponto de partida, e a liberdade também é o ponto de chegada – tanto que é o substantivo final do artigo 30 com o qual termina a declaração universal dos direitos humanos. Nós estamos hoje convivendo com uma questão mais desafiadora que é a liberdade sendo sequestrada em benefício daqueles que são contrários à liberdade. E este é um tema antigo na filosofia política. John Locke já falava a respeito da tolerância que não se pode dar o benefício da tolerância para os que são intolerantes. Isso é uma tensão que vem no pensamento liberal, isso faz parte do pensamento liberal de alguns séculos. Nós podemos então ter um regime que confere plena voz para as vozes que querem silenciar as outras vozes? Isso não é uma questão de limite da liberdade, é uma questão de não admitir ataques contra a liberdade, ataques contra a dignidade da pessoa humana. Portanto, a gente deve pensar na categoria das tensões, e a democracia precisa encontrar os pontos de equilíbrio. E esses pontos de equilíbrio se movem ao longo da história – eles não são fixos. O discurso de ódio é aquele que estimula ódio contra a existência de seguimentos, de etnias, de grupos sociais, de grupos culturais, pregando o extermínio. Este discurso favorece ações violentas que virão depois. O discurso de ódio é uma violência em si porque ele é ofensivo, é ultrajante, humilha, oprime, mas ele leva a outras violências. Vamos pensar no texto do Mein Kampf, livro que Hitler escreveu e foi publicado em 1925. Ali estão escritas as violências que se materializariam depois no Holocausto e na tirania totalitária do nazismo. O que é que deveríamos fazer então, esta é a pergunta. Deveríamos censurar preventivamente livros como Mein Kampf? Não, a solução não é por aí. A solução é você problematizar e contextualizar essas coisas, sinalizar o que são essas coisas e responsabilizar os autores dessas ofensas pelo fundamento daquilo que eles estão proferindo. Quando então a democracia responsabiliza autores de discursos de ódio em processos democráticos em medidas até jurídicas democráticas, nós estamos educando a sociedade e estamos protegendo a sociedade contra violências piores que vêm depois da violência do discurso de ódio. A pessoa vai lá e fala uma barbaridade. Ela tem os meios para fazer isso, mas ela responderá pelos abusos. Isso também é outro princípio do liberalismo. Isso está escrito no artigo 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que diz “a livre circulação das ideias é um dos mais preciosos direitos do homem e todos responderão na forma da lei pelos abusos que cometerem”. Hoje, a gente identifica o discurso de ódio como um abuso da liberdade. Não há nenhuma inovação censória nisto, é um princípio do século 18, do século das luzes, conhecido. Assim como a intolerância não deve merecer a tolerância, os abusos da liberdade devem ser punidos.

Palavra Aberta – Qual é o papel do jornalismo neste cenário?
Bucci – O jornalismo vive crises muito graves. Caio Túlio Costa, por exemplo, aponta algumas delas em textos recentes dele. Uma crise claramente de credibilidade, uma crise de modelo de negócio, uma crise econômica. Nós temos também dificuldades advindas do surgimento de um protagonismo de novos atores na esfera pública. Hoje, cada pessoa de posse de um celular conectado na internet é uma mídia. Essa pessoa tem força de mídia. E isso tirou, conforme aponta Caio Túlio Costa com muita pertinência, o destaque… a centralidade das redações jornalísticas. Mas nós precisamos levar em conta uma conjugação de fatores, e o Caio chama muita atenção para isso com toda a razão. O jornalismo está em crise, mas nós temos de enxergar o jornalismo não apenas como uma realidade de mercado. Não existe jornalismo apenas em empresas privadas. Existe jornalismo em instituições públicas, como nós temos as televisões e rádios públicas da Alemanha, Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, de muita tradição, especialmente no noticiário internacional. O jornalismo é também uma realidade de mercado e ali a crise é muito grave, mas não é apenas isso, é também um serviço público prestado por instituições com fins de lucro e instituições que não têm fins de lucro. E nós estamos assistindo o crescimento de soluções colaborativas de jornalismo. Exemplo disso é o site Agência Pública, do Brasil, mas nos Estados Unidos a gente tem a ProPublica e outras instituições. Há caminhos para a superação desta crise do jornalismo, e estes caminhos passam pelo reconhecimento de que o jornalismo cumpre uma função pública e presta um serviço público. Acredito que nós vamos enxergar caminhos para isso, porque se não houver imprensa livre e se não houver jornalismo crítico, não haverá democracia. Portanto, se existe uma crise da democracia e ela é medida, é aferida com critérios objetivos irrefutáveis, existiria necessariamente uma crise na função de informar a sociedade a partir do ponto de vista independente, que é o que faz a imprensa. Isso também está em crise.

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