Jornalismo é caminho seguro para garantir coesão social, diz presidente da ANJ

Jornalismo é caminho seguro para garantir coesão social, diz presidente da ANJ 1024 637 Instituto Palavra Aberta

A escalada de violência vista no período pré-eleitoral empurra o Brasil para um cenário semelhante ao experimentado atualmente pelos norte-americanos, de forte divisão social, diz o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), o jornalista Marcelo Rech. “Essa secessão que estamos vendo nos Estados Unidos, um país cindido, é extremamente danosa não só para o convívio social, mas para o futuro da nação. Nós estamos no mesmo caminho”, lamenta ele em entrevista ao site do Instituto Palavra Aberta. Para Rech, entretanto, há um instrumento seguro para mudar este cenário: o jornalismo, “que segue um caminho de equilíbrio, de moderação, de apresentar todos os lados de uma história, de diferentes opiniões”. Leia abaixo a íntegra da entrevista.

Estamos próximos de mais uma eleição, e há o temor de nova avalanche de desinformação, como ocorreu no pleito de 2018. Na hipótese de o fenômeno se repetir, qual é o papel da imprensa?

Acho que já está se repetindo. A estratégia é muito similar. Talvez ela esteja mais sofisticada, talvez mais sutil. Mas hoje nós estamos mais preparados. Acho que a imprensa está bem mais preparada. Eu não diria que nós fomos pegos de surpresa em 2018, mas a avalanche de desinformação foi muito intensa e, de lá para cá, a gente vem aperfeiçoando nossos mecanismos, promovendo alianças. Acho que uma coisa muito importante que aconteceu foi o surgimento de consórcios entre veículos de imprensa, entre jornalistas, veículos convencionais e novos veículos e com as plataformas também, além das organizações que são responsáveis pela eleição: TSE e tribunais regionais eleitorais. Verificamos a realização de eventos conjuntos, conferências, congressos, acordos, tudo no sentido de tentar reduzir o fluxo de desinformação no período eleitoral e também pré-eleitoral. Acho que estamos mais preparados e, mais do que isso, acho que a população está mais preparada. É verdade que ainda é muito fácil capturar corações e mentes das pessoas que não têm uma educação midiática avançada, que estão mais sujeitas a acreditar em falsidades, ainda uma certa ingenuidade, mas a gente percebe que os jovens são mais letrados, mais alfabetizados nesse novo mundo. Eles são menos propensos a acreditar em desinformação. As pessoas de mais idade, pouco letradas do ponto de vista digital, caem mais nas esparrelas que são disseminadas nas redes. 

Como fica o jornalismo nesse cenário?

Muito antes do surgimento da expressão “fake news” já se defendia que, neste novo mundo digital, o nosso (da imprensa) principal papel não era mais a apuração, não era mais registrar em fotografia um evento. Ocorre que muito provavelmente alguém já chegou antes nesta apuração ou testemunhou algo ou uma câmera flagrou o acontecimento. O nosso papel central como jornalistas, isso já há 10 ou 15 anos – e se acentua cada vez mais –, é certificar a informação, certificar a realidade. No fundo, jornalistas e jornalismo são certificadores da realidade; são aqueles que põe o carimbo do que é ou não é autêntico; se isso é verídico ou inverídico; se é verdade, mas está descontextualizado. Essa certificação da realidade é o papel reservado ao jornalismo. Claro, ao assumirmos este papel, nós contrariamos – como sempre na história do jornalismo – os interesses daqueles que querem fazer da desinformação a sua alavanca de poder. Enxergam no jornalismo esse obstáculo, e ao fazer isso, a maneira de retirá-lo da frente é tentar desmoralizá-lo, tentar dar um carimbo de militância, de ativismo, de minar a credibilidade deste papel de certificador que o jornalismo tem. 

Quais os limites entre o discurso de ódio e a liberdade de expressão?

Não vou entrar na questão conceitual porque aí é mais para o campo da filosofia, e acho fascinante a discussão. A liberdade de expressão é eu dizer o que entendo, mas os outros dizerem o seu pensamento mesmo que isso nos contrarie: Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo (Voltaire). Este é o princípio básico. Acho que no Brasil temos dois grandes alicerces que estabelecem limites a essa liberdade de expressão. Um deles é a Constituição, que várias vezes se refere à liberdade de expressão, à liberdade de pensamento e à liberdade de imprensa. Não pode haver censura prévia; ponto. Não precisa de licença para fazer uma publicação. E tem o princípio basilar, na minha opinião, que é o inciso 4 do artigo 5, segundo o qual é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Este é o ponto central da Constituição. Todo mundo é livre para manifestar o pensamento, mas não de forma anônima. Eu insisto nesse aspecto porque pressupõe a responsabilidade pelo que você diz, fala, escreve, enfim, se manifesta. Pode dizer o que bem entender, mas você é responsável por isso. O que isso significa? É que diante da lei você tem responsabilidades. Nesse caso, vamos ao código penal: calúnia, injúria e difamação. Atribuir crime a alguém que tenha cometido calúnia e difamação ou tenha atentado contra a honra. Isso está bem caracterizado na lei brasileira, está bem estudado, definido, embora obviamente haja divergências. Mas existem legislações referentes a isso no Brasil e em outros países. Na Alemanha, por exemplo, negar o holocausto é crime, está definido em lei lá, apologia nazista é crime na Alemanha. Nos Estados Unidos não é. Existem variações que fogem ao campo filosófico e tem a ver com a história dos países, isso está dentro do aceitável. Ninguém pode dizer que não é aceitável a legislação alemã que define a negação do holocausto como crime. Isso é totalmente aceitável diante do retrospecto que o povo alemão tem da Segunda Guerra Mundial. E ninguém está dizendo que na Alemanha não há liberdades de expressão e de imprensa por causa disso. É um tema fascinante que cabe a juristas, filósofos e jornalistas, mas o fundamento é ter responsabilidade sobre o que se diz. E as pessoas não se dão conta disso. Acredito que a educação midiática – na qual o Palavra Aberta faz um trabalho excepcional, de vanguarda no Brasil – é fundamental para que as pessoas também tenham consciência de que quando vão para as redes sociais e xingam alguém, ofendem alguém, fazem isso com palavras absolutamente grosseiras, elas podem ser processadas e condenadas, porque isso está na lei brasileira. Nada impede que alguém processe outra pessoa por calúnia, injúria e difamação e obtenha, muitas vezes, uma reparação financeira. Muita gente desconhece isso. Acham que o território da internet é um território sem lei, uma terra de ninguém, e não é. Claro, há peculiaridades, características, mas não é uma terra sem lei.

O jornalismo não poderia estar fazendo mais pela educação midiática?                   

Acho que o trabalho de educação midiática é um trabalho de longo prazo, de gerações. Não é algo que aconteça em um ou dois anos. Deveria inclusive ser objeto de disciplina nos bancos escolares, de uma capacitação de professores, até porque é um tema subjetivo que pode ser utilizado para o bem e para o mal. Acho que durante muitos anos nós (imprensa) pecamos por não conseguirmos ou não nos importarmos em fazer uma explicação sobre o nosso próprio trabalho. Explicar que opinião não é notícia. Que um jornal traz diferentes opiniões e isso não quer dizer que o dono do jornal ou os editores estejam endossando essas opiniões. Um jornal é um supermercado de ideias de diferentes origens, e isso é saudável, inclusive de opiniões que discordem do próprio jornal, cujo posicionamento está no editorial. É saudável que um colunista não represente o dono do jornal e não vai ser demitido porque contrariou a opinião do patrão. No processo industrial da mídia moderna, isso não é um aspecto negativo, é um aspecto saudável, positivo, mas muito difícil para as pessoas compreenderem. Acho que durante muito tempo nós não conseguimos explicar isso, e ainda hoje temos essa dificuldade. As pessoas confundem muito um colunista ou um apresentador de televisão achando que aquilo ali é o veículo se manifestando. Não. É o colunista que se manifesta. Outro, ao lado dele, talvez tenha uma opinião divergente. Acho que agora a gente começa a fazer uma melhor explicação disso tudo. Vejo muitas vezes um texto explicando por que determinadas atitudes foram tomadas dentro de uma decisão editorial de um veículo, por que não está se dando um nome, por que se decidiu levar a público uma outra matéria. Enfim, aquelas discussões que se tem dentro das redações de forma cotidiana e que, aos poucos, se transfere ao público para que ele entenda o que está por trás de uma decisão editorial, que não tem conspiração, que não tem um acerto debaixo dos panos, na sombra. São, na verdade, discussões travadas em público dentro de uma redação de jornais, entre editores que visam a melhor informação possível, à luz das informações que sem têm naquele momento. Isso tudo é complexo, difícil de ser compreendido por quem não é do meio. Acho que temos um longo caminho a percorrer para a gente conseguir explicar isso de uma forma simples, compreensível, acessível. Gosto de comparar a profissão de jornalista com a do médico – há várias similaridades. Mas a primeira delas é que estamos no ramo do acerto, do diagnóstico certo – nós não estamos no ramo do diagnóstico errado. Às vezes, temos de montar uma junta de profissionais, assim como fazem os médicos, para fazer este diagnóstico, para ajudar na precisão. Na construção de diagnóstico, na combinação de exames e todo o conhecimento prévio que o médico tem, se ele não explicar para as pessoas de uma maneira simples como chegou naquele diagnóstico, a pessoa não vai entender. A começar pelo jargão que eles usam, que o jornalismo usa também no seu dia a dia. Muitas pessoas acham que opinião é matéria. Eu escrevo uma coluna e muitas vezes as pessoas me dizem “não gostei da sua matéria”.

Muitos países estão avançando no debate sobre a remuneração do jornalismo pelas empresas digitais. Como está esse debate no Brasil e o quão importante é isso para a liberdade de expressão?

Este é um tema central hoje no mundo da comunicação, e as plataformas e os veículos estão muito preocupados com o ambiente de informação e desinformação que ataca o planeta. A gente vê os resultados disso na Rússia, por exemplo. Se o país tivesse uma imprensa independente, vigorosa, livre, não teria guerra ou não conseguiriam sustentar a guerra. Além de uma tragédia humana, sobretudo para a Ucrânia, é uma tragédia econômica que se espalha pelo mundo porque não tem uma imprensa livre, independente, saudável e vigorosa na Rússia. No mínimo dificultaria muito o que (Vladimir) Putin fez e continua fazendo. A gente vê represálias, os riscos, as ameaças às próprias big techs neste ambiente, as multas pesadíssimas, os riscos de prisão e de morte que os funcionários das empresas de tecnologia estão sofrendo. A Rússia hoje nos preocupa a todos, estamos juntos nisso. É de todos, inclusive das plataformas, o interesse de um ambiente jornalisticamente saudável, que faça a certificação da realidade com independência, ética e integridade. Acho que tem avanços em alguns países, acordos como na Austrália, França, Alemanha e Canadá, por exemplo. Mas eu acredito que nós precisaríamos de um acordo mundial, uma autorregulação em escala global que, de fato, pudesse não só preservar, mas aprimorar o ambiente do ecossistema jornalístico para fazer o enfrentamento deste universo distorcido da desinformação. Temos aqui no Brasil, por exemplo, uma relação, com vários acordos e convênios de desenvolvimento de jornalistas e veículos com Meta e Google que são muito positivos, muito estimulantes, mas que é muito pouco diante do tamanho do rombo que se abriu no jornalismo mundial. Se a gente for fazer uma analogia, costumo dizer que um efeito secundário da atividade das big techs, que elas não querem, não gostariam de produzir esse efeito, não é o objetivo delas, é a poluição social causada pela desinformação e pelo discurso de ódio. Quem tem a capacidade de limpar essa poluição é o jornalismo profissional. Só que tem um custo de manutenção dessa atividade que deve ser pago de uma maneira acordada pelas big techs, aqueles que involuntariamente estão causando essa poluição. Tem um longo caminho aí, mas eu acredito que se a gente for por uma autorregulação entre as empresas digitais e os veículos de comunicação, os veículos da imprensa profissional nós conseguiríamos junto com a educação midiática reverter esse estado de descalabro informativo que nós estamos vivendo hoje. Mas precisa de fato de um esforço muito maior daquilo que é feito hoje, que é bastante positivo, mas ainda isolado e localizado. Precisaria ter realmente uma abordagem em que mudasse o ponteiro da imprensa mundial que removesse o ponteiro de erosão da imprensa mundial. 

Pela primeira vez em 20 anos, o Brasil entrou na zona vermelha do Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa Repórteres sem Fronteiras (RSF). O senhor acredita que as agressões a jornalistas e organizações de notícias vão piorar durante o processo eleitoral? Como evitar a escalada de violência? 

(A violência) aumenta preocupantemente. O Brasil desceu muito em diferentes rankings. É preocupante ficar abaixo do México onde a morte de jornalistas é comum. O Brasil está realmente com uma imagem péssima no exterior. Sinto isso nas minhas andanças lá fora, quantas vezes tenho de me manifestar sobre a situação no Brasil. Isso é resultado desse incentivo ao extremismo, à agressão dos jornalistas, particularmente as mulheres, num crescendo de ódio à imprensa que é parte daquela instrumentalização que mencionei antes para neutralizar o certificador que atrapalha a conquista do poder pela desinformação. O Brasil adotou essa tática de uma maneira muito intensa na campanha eleitoral de 2018, que elegeu um presidente fundado nesta estratégia, que levou ao poder Donald Trump (EUA), Rodrigo Duterte (Filipinas) Viktor Orbán (Hungria) e que sustenta outros mundo afora. Se transformou em um campo de batalha. Eu acompanho eleições há 44 anos, desde os 18 anos, e nunca vi tanta eletricidade no ar, tanto nível de agressão estimulado principalmente por este ambiente das redes sociais. Nada contra que as pessoas se manifestem democraticamente e livremente nas ruas, mas sem esse nível de agressão, sem querer eliminar o adversário. Pode discordar dos adversários, apresentar seus argumentos, mas não eliminar, aniquilar, destruir. Não vou culpar um lado só por essa situação porque essa posição também vinha do outro lado. Durante muito tempo era “nós contra eles”, “eles contra nós também”. Isso talvez tenha gerado uma onda mais intensa. No entanto, mais do que procurar culpados do passado, o Brasil precisa encontrar uma pacificação do futuro, seja quem for o vencedor. Entender que, sem a união do país, sem a união das famílias, dos amigos, dos locais de trabalho, o Brasil não vai se construir como nação. Essa secessão que estamos vendo nos Estados Unidos, um país cindido, é extremamente danosa não só para o convívio social, mas para o futuro da nação. Nós estamos no mesmo caminho. O Brasil copia os Estados Unidos até na denúncia das eleições, do sistema eleitoral. Nós vamos para um país cindido em 2023. E eu acredito que uma maneira de aproximar esses dois Brasis, diferentes Brasis, seria pela própria imprensa, que segue um caminho de equilíbrio, de moderação, de apresentar todos os lados de uma história, de diferentes opiniões, mas para isso precisa, de fato, ser robustecida.    

 

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