Na democracia, a liberdade de opinião não pode ser restringida

Na democracia, a liberdade de opinião não pode ser restringida 1000 563 Instituto Palavra Aberta

Toda a história da liberdade de expressão mostra que o grande perigo reside na subjetividade e no caráter difuso dos critérios de supressão do direito de fala, além da censura prévia. A análise é de Fernando Schüler, cientista político e professor do Insper. “São os dois males que, infelizmente, voltamos a ter no Brasil”, diz. “Penso que jamais se deveria restringir a liberdade de opinião em uma democracia, bem como jamais punir alguém em nome da verdade ou inverdade”, destaca ele entrevista ao site do Palavra Aberta.

Há retrocesso na liberdade de expressão no Brasil e no Mundo? Por quê?

Sem dúvida. Recentemente li uma longa matéria no The New York Times documentando como mesmo uma organização centenária, e esteio na defesa dos valores da Primeira Emenda, como a American Union Civil Liberties, nos últimos anos recuou. Aderiu às chamadas pautas “progressistas”, em boa medida sacrificando os valores da liberdade de expressão. A matéria identifica a virada com a ascensão de Trump e da chamada “nova direita”. Este foi, no fundo, um fenômeno que testou a convicção pluralista de muitos defensores históricos da liberdade de expressão. E muita gente não passou no teste. Diante da polarização política, as pessoas cederam. E cederam como sempre acontece quando a liberdade de expressão é ferida: em nome das boas razões. Nos últimos tempos, as boas razões giraram em torno da “defesa da democracia”, ou do “combate à desinformação”. Isto sempre me lembra George Orwell e sua “novilíngua”. Usamos palavras agradáveis para fazer exatamente o seu oposto. Em nome da democracia, aceitamos a supressão de valores essenciais à própria democracia. Em nome da informação, censuramos a livre expressão de ideias. No mais, há a questão das chamadas guerras culturais. Os temas éticos, de um modo geral, passaram a ocupar o centro da cena pública. Temas ligados às identidades, de um lado, e aos valores tradicionais, de outro. O aborto é um bom exemplo, hoje, no Brasil ou nos Estados Unidos. São temas sobre os quais não há acordo possível, numa democracia, e logo são um convite a toda sorte de radicalismo.

Em artigo na Folha de S.Paulo, o senhor afirmou que a liberdade de expressão se tornou um tema inconveniente. Por quê?

Até a bem pouco tempo atrás fazíamos seminários e discussões sobre liberdade de expressão, e havia, ou ao menos parecia haver, um amplo consenso sobre o tema. O próprio STF tomou decisões importantes, nesta direção, com o fim da lei de imprensa e o veto a censura de biografias. As coisas hoje mudaram. O STF impõe abertamente a censura prévia, quando não a prisão, pura e simplesmente, como no recente caso do PCO, de jornalistas como Cláudio Lessa, Wellington Macedo e tantos outros, e parece ter um amplo apoio para fazer isto. Mesmo a Lei de Segurança Nacional, antes chamada de “famigerada”, passou a ser usada, nos últimos anos, corriqueiramente pelo Executivo e pelo STF, e ao menos em um caso pelo próprio Congresso Nacional. Um traço significativo do nosso tempo é a sutil migração da defesa de liberdade de expressão para a defesa genérica da ideia de “verdade”. Uma decisão recente do TSE puniu comunicadores, na internet, por não dizerem a verdade sobre as urnas eletrônicas. Tudo isto passou a ser visto, ao menos por uma parte importante da sociedade, como o novo normal. A ideia de que cabe ao Estado determinar o que é a verdade e punir, de maneira expeditiva, sem o contraditório ou o devido processo, aos divergentes. Talvez o maior sintoma disso tudo seja a existência, há perto de três anos, de um inquérito sobre fake news, em Brasília, sendo que fake news não é crime, no País. Pessoas são investigadas e punidas a partir da simples “interpretação” de uma autoridade de Estado, a partir de conceitos vagos como “ameaça às instituições” e “desinformação”. Quem estuda a liberdade de expressão sabe dos riscos que isto representa. Talvez estejamos sendo levados longe demais pela polarização política, e esquecendo alguns valores essenciais da própria democracia liberal.

É possível estabelecer limites à liberdade de expressão sem ameaçar a democracia?

Penso que o Brasil definiu alguns limites bastante claros, na lei antirracismo. Há também um remédio perfeitamente tipificado, em nosso ordenamento jurídico, que são os chamados crimes contra a honra. Nestes dois casos, a punição, condicionada ao devido processo, é sempre a posteriori. O que não é admissível é a censura prévia. Também não é admissível a censura em nome de categorias vagas e intuitivas como a “verdade” ou o “risco às instituições”. Era exatamente este o problema da Lei de Segurança Nacional. Com esta preocupação foi feita a Primeira Emenda à Constituição Americana, depois normatizada na decisão histórica do Justice Oliver Holmes, na Suprema Corte, com seu critério do “clear and present danger”. Toda a história da liberdade de expressão mostra que o grande perigo reside na subjetividade e no caráter difuso dos critérios de supressão do direito de fala. E, por óbvio, na censura prévia. São os dois males que, infelizmente, voltamos a ter no Brasil. Penso que jamais se deveria restringir a liberdade de opinião em uma democracia, bem como jamais punir alguém em nome da verdade ou inverdade.

Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, o senhor disse que “nos tornamos a democracia do excesso e da irrelevância”. Como chegamos e esse ponto e como fazemos para reverter esta situação?

Vivemos em meio a uma revolução tecnológica. Algo que a Europa viveu nos inícios da era moderna, com a proliferação da imprensa, a partir de Guttemberg. Tanto lá, como agora, o poder se descentralizou. Em particular com a internet, os indivíduos ganharam poder. Milhões de pessoas ingressaram no debate público, sem a mediação dos veículos ou instituições tradicionais, das democracias liberais, e o volume de informação à disposição das pessoas cresceu exponencialmente. De certo modo, vivemos a materialização das previsões de Jean Baudrillard, da ascensão do simulacro ao centro da cena pública. Sistemas que operam com overload de informação tem sua funcionalidade comprometida. Temos dificuldade de separar o real do virtual, somos levados o tempo todo pelo Myside bias, isto é a tendência de selecionar o tempo inteiro informações que reafirmam nossas preferências, e a política, como quase tudo, ingressou no universo do entretenimento popular. Quem definiu isto bem foi o cientista político americano Jason Brennan, dizendo que milhões de pessoas passaram da condição de hobbits, ou alienados, para hooligans, ou torcedores. É só observar os trend topics das redes sociais. A permanente guerra de torcidas, o radicalismo vazio, a pretensão oca das pessoas a representaram a verdade, a virtude, em um tipo banal de dualismo moral. Isto tem a ver, em certa medida, com o fato de que os problemas da política são, por definição, complexos. É difícil discutir o teto de gastos, a reforma tributária ou o novo marco do saneamento. Então é melhor lidar com a trivialidade. É mais fácil e mais divertido. E é isso que as pessoas fazem.

Como enfrentar o problema da desinformação e do discurso de ódio nas redes sociais sem fragilizar a liberdade de expressão?

Penso que a única maneira é o convencimento. É exemplar, nesse sentido, o trabalho que o Palavra Aberta faz. É um trabalho difícil, lento, mas que precisa ser feito. Também são importantes as agências de checagem, desde que elas mesmas não tenham uma inclinação política, e seria muito importante que a mídia profissional atuasse com imparcialidade. Obviamente, não é o caso, no Brasil. Um dos fatos preocupantes da nossa época é que mesmo a mídia profissional ingressou na polarização política. Então você tem, no Brasil de hoje, a mídia pró e a mídia anti-Bolsonaro. Com Lula havia isto também, mas numa escala menor. Este fenômeno aconteceu nos Estados Unidos também, com Donald Trump. Isto é ruim pois retira da democracia um elemento vital: o papel crítico, a partir de evidências e do bom senso, que a mídia profissional deve desempenhar. Uma mídia que apenas ataca o governo é tão útil à democracia como uma mídia que apenas defende o governo. Ambas perderam o senso crítico, o distanciamento que permite julgar com propriedade, e oferecer uma base de informação segura aos cidadãos.

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