A proibição estatal do discurso político é pior do que o extremismo, diz diplomata

A proibição estatal do discurso político é pior do que o extremismo, diz diplomata 730 487 Instituto Palavra Aberta

O discurso extremista deveria contar com a proteção da liberdade de expressão, sendo proibido apenas quando incitar diretamente à violência imediata. A opinião é do diplomata Gustavo Maultasch, doutor em administração pública pela Universidade de Illinois – Chicago e autor do livro “Contra toda censura: Pequeno tratado sobre a liberdade de expressão” (editora Avis Rara).

“Isso não significa que concordemos com esse tipo de discurso; muito pelo contrário”, destaca Maultasch em entrevista exclusiva ao site do Instituto Palavra Aberta. “Acho que temos a obrigação de revelar sua vileza, de combater essas ideias no debate público. Mas a proibição estatal do discurso político cria um problema muito maior do que o extremismo, pois passaríamos a ter um estado com poder demais para policiar nossas ideias, e uma população acostumada a ter suas manifestações tuteladas pelas autoridades”, afirma.

Para o diplomata, vivemos hoje, em boa parte, numa democracia tutelada. “Essa é parte da razão pela qual temos vivenciado a volta da libido censória”, ressalta. “Boa parte dos escolarizados urbanos brasileiros acredita numa democracia teleológica, escatológica, numa democracia que rume para uma visão de mundo específica (em geral, progressista). Eles carregam uma visão de mundo tecnocrática, messiânica, e acreditam que devem “civilizar” a população, trazê-la para o “iluminismo”, e que sabem o que é melhor para o povo, mais do que ele próprio”, argumenta Maultasch.

Segundo ele, essa da sociedade não aceita que a democracia seja um regime aberto, em que o povo possa determinar o seu rumo, ainda que esse rumo esteja em desacordo com os seus anseios. “Então quando a democracia começa a apontar para outros rumos, quando outras ideias indesejadas começam a surgir, os escolarizados entram em pânico e passam a tutelar o debate público. Isso explica um pouco por que tanta gente que se pensa esclarecida e democrática encontra-se, agora, defendendo a volta da censura”.

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

Instituto Palavra Aberta – A liberdade de expressão tem limites?

Gustavo Maultasch – Sim, mas dizer isso não esclarece muita coisa, porque todo o debate sobre liberdade de expressão reside precisamente em quais limites devem ser impostos ou não. Algumas das proibições – como incitação direta à violência, dentre outros – têm aceitação unânime entre os estudiosos do tema. Outros limites – como o discurso de ódio –, no entanto, já são mais disputados. Agora, precisamos estar alertas porque há muitos censores que pensam que, como há alguns limites, eles estão livres para inventar novos limites (como “negacionismo”, “ataque à democracia”, “fake news”), o que na minha visão é um avanço maligno da censura.

Instituto Palavra Aberta – Como diferenciar o que é legítimo direito de expressão extremista e o que é crime? Discursos racistas, homofóbicos, misógenos, entre outros preconceitos, devem ter liberdade de expressão? O discurso de ódio fere o direito à liberdade de expressão?

Gustavo Maultasch – Primeiro é preciso dizer o seguinte: uma coisa é reconhecer que você tem um direito; outra coisa, bastante diferente, é reconhecer que você faz um bom uso desse direito. Então uma coisa é reconhecer que você tem direito à expressão, outra coisa é concordar com o conteúdo dessa expressão. Você tem o direito de dizer que comunismo é uma boa ideia, muito embora a história tenha demonstrado que se trata de uma das ideias mais sanguinárias jamais concebidas. Vamos proibir o comunismo? Não me parece uma boa ideia restringir a liberdade de expressão dessa maneira. O mesmo vale para outros discursos extremistas. Agora, uma coisa é importante pontuar: todos concordamos que discurso de ódio é ruim; racismo, antissemitismo, homofobia e outros preconceitos são coisas vis mesmo. A questão é qual a melhor maneira de se combater esses discursos, em especial tomando o cuidado para não concentrar poder demais nas mãos do estado. A proibição desses discursos é uma solução pior do que o problema original que se queria resolver, porque pessoas em posição de autoridade certamente abusariam desse poder para proteger os seus próprios interesses, calando críticas ou ideias legítimas que as desagradam. E muitas vezes são as próprias minorias que mais sofrem com essa concentração de poder.

Instituto Palavra Aberta – Vozes extremas não podem ser caladas?

Gustavo Maultasch – O discurso extremista deveria contar com a proteção da liberdade de expressão, sendo proibido apenas quando incitar diretamente à violência imediata. Como expliquei anteriormente, isso não significa que concordemos com esse tipo de discurso; muito pelo contrário, acho que temos a obrigação de revelar sua vileza, de combater essas ideias no debate público. Mas a proibição estatal do discurso político cria um problema muito maior do que o extremismo, pois passaríamos a ter um estado com poder demais para policiar nossas ideias, e uma população acostumada a ter suas manifestações tuteladas pelas autoridades.

Instituto Palavra Aberta – Limitar manifestações odiosas, como o nazismo, rompe com a importância de garantir pluralidade na agenda nacional?

Gustavo Maultasch – Não concordo com esse argumento de pluralidade; o nazismo é uma ideologia vil que não acrescenta absolutamente nada a ninguém nem a qualquer agenda nacional. O argumento não é por aí. O argumento encontra-se nos riscos de tirania que mencionei anteriormente.

Instituto Palavra Aberta – Atos antidemocráticos devem ser considerados crime?

Gustavo Maultasch – Depende do que sejam esses “atos”; estamos falando de ações de violência? Aí têm de ser proibidos mesmo. Incitação direta a violência (“vamos depredar o Congresso agora!”) deve ser proibida também. Agora, o problema é que temos vivido uma época hiperbólica, de inflação da linguagem, em que muitos chamam de “ato” ou “ataque” algo que é apenas uma fala. Discursos sem incitação direta à violência não deveriam ser proibidos. Dou novamente o exemplo do comunismo, que é algo antidemocrático por definição. Vamos proibir o comunismo no Brasil? Proibir o partido, prender os seus militantes? Mesmo julgando o comunismo uma das ideologias mais perniciosas e genocidas que jamais existiram, eu seria contra essa limitação da liberdade de expressão.

Instituto Palavra Aberta – Mas isso não é importante para defender a democracia?

Gustavo Maultasch – A censura às expressões caracterizadas como “atos antidemocráticos” ou “ataques às instituições” parte de uma teoria errada sobre a liberdade de expressão e uma teoria errada sobre a democracia. Muitos pensam que, para defender a democracia, seja preciso silenciar discursos antidemocráticos. Isso muitas vezes tem o efeito contrário, minando a legitimidade da democracia como um sistema aberto, cujo rumo todos temos a chance de influenciar. A partir do momento em que você silencia um grupo, este passa a ver o regime atual como impenetrável às suas ideias, como hostil à sua visão de mundo, como um adversário. Com essa perda de legitimidade, muitos passam a cogitar a mudança de regime. Pode parecer paradoxal, mas conceder ampla liberdade de expressão é a melhor maneira de renovar a legitimidade do sistema democrático. Esse argumento – que chamo de gambito da liberdade de expressão – é explorado em detalhe no meu livro.

A outra teoria errada refere-se à democracia. Muitos escolarizados urbanos brasileiros acreditam que os rumos da democracia devem ser controlados pelos mais educados, ou pelo menos por uma tecnocracia, uma burocracia esclarecida. Mas se a democracia é do povo, como se diz, o povo tem o direito de dispor dela, inclusive defendendo o seu fim. Eu também acho isso bastante ruim e desagradável, mas é o pacote da democracia. Tanto o sujeito de direita que fala em regime militar quanto o de esquerda que fala em ditadura do proletariado têm o direito de defender essas ideias repugnantes no debate público. Essa é uma premissa, um axioma da democracia: não tem ninguém melhor do que ninguém, não há nenhum ponto neutro superior a partir do qual se possa julgar o que é uma reforma cabível ou incabível do nosso sistema político. Enquanto o sujeito não incitar a violência, ele deve ter o direito a expressar suas ideias, por piores que sejam.

Instituto Palavra Aberta – Vivemos em uma democracia tutelada?

Gustavo Maultasch – Em geral sim, e essa é parte da razão pela qual temos vivenciado a volta da libido censória. Boa parte dos escolarizados urbanos brasileiros acredita numa democracia teleológica, escatológica, numa democracia que rume para uma visão de mundo específica (em geral, progressista). Eles carregam uma visão de mundo tecnocrática, messiânica, e acreditam que devem “civilizar” a população, trazê-la para o “iluminismo”, e que sabem o que é melhor para o povo, mais do que ele próprio. Eles não aceitam que a democracia seja um regime aberto, em que o povo possa determinar o seu rumo, ainda que esse rumo esteja em desacordo com os seus anseios. Então quando a democracia começa a apontar para outros rumos, quando outras ideias indesejadas começam a surgir, os escolarizados entram em pânico e passam a tutelar o debate público. Isso explica um pouco por que tanta gente que se pensa esclarecida e democrática encontra-se, agora, defendendo a volta da censura. E um detalhe: todo censor vive um dilema, porque no fundo ele sabe que o que ele faz é errado. Então ele precisa inventar algum pretexto (“fake news”, “negacionismo”, “ataque às instituições” etc) para justificar a sua libido censória. Mas quando olhamos para trás, para a história, quando vemos a censura imposta no passado, fica bastante fácil decidir: aqueles a favor da censura sempre nos parecem, hoje, como pessoas em pânico tomando ações equivocadas, desproporcionais e autoritárias. Exatamente o que vemos nos censores de hoje.

*Crédito da imagem: Arquivo pessoal

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