Liberdade de expressão não é escudo para crimes, diz presidente do Palavra Aberta

Liberdade de expressão não é escudo para crimes, diz presidente do Palavra Aberta 1008 1024 Instituto Palavra Aberta

A liberdade de expressão no Brasil é plena, mas tem limites legais muito claros, alerta a presidente do Instituto Palavra Aberta, Patricia Blanco. “Não pode ser usada como um escudo de proteção para a prática de crimes, como intolerância, racismo, ações preconceituosas, discriminação de gênero, injúria, calúnia, difamação ou qualquer outro tipo de crime”, afirma ela em entrevista ao site do instituto. Confira abaixo os principais trechos da conversa.

Palavra Aberta – Já são 12 anos de Instituto Palavra Aberta. Como a entidade se modificou e se aprimorou ao longo destes anos para estar na liderança do combate à desinformação e na defesa da liberdade de expressão?

Patricia Blanco – De 12 anos para cá o instituto amadureceu no sentido de se posicionar e de entender que a defesa e a promoção da liberdade de expressão passam necessariamente pela educação midiática e informacional. Se a gente lembrar o que foi o começo do instituto, lá atrás, tínhamos claro que deveria ter um braço muito forte voltado para a educação, voltado para incentivar a produção acadêmica na área de liberdades – no primeiro ano do Palavra Aberta criamos uma órgão, um centro de estudos que tinha como objetivo incentivar essa discussão mais embasada da liberdade de expressão – e, principalmente, dos impactos de possíveis restrições a essa liberdade. Mas o que se confirmou ao longo do tempo é que os desafios da liberdade de expressão passam pela necessidade de educar midiaticamente a sociedade para que ela posso não somente interpretar corretamente as informações que ela recebe nesse mundo conectado com uma avalanche de informações onde tem de tudo – a informação propriamente dita, o fato, a opinião, a desinformação, mas também para que ela possa exercer plenamente a sua liberdade de expressão. Então é hoje uma função do Palavra Aberta buscar educar a sociedade para que ela, ao saber ler com exatidão as informações, produzir corretamente as informações que ela vai passar para frente, para que ela possa participar ativamente da sociedade democrática exercendo sua liberdade de expressão.

Palavra Aberta – Do ponto de vista global, a liberdade de expressão está mais ameaçada do que nunca?

Patricia Blanco – Sim. A gente pode afirmar que em determinados países as liberdades de expressão e de imprensa sofreram retrocessos e sofrem ameaças quando principalmente a gente vê, no atual ambiente de guerra, o cerceamento a vozes que podem trazer informações diversas daquelas informações oficiais. Se nós analisarmos de 12 anos para cá, o cenário de liberdade de expressão no mundo sofreu e sofre ameaças que lá em 2010, quando o Palavra Aberta foi fundado, não existiam. O que a gente tinha naquele momento eram ameaças pontuais que mostravam, por exemplo, tentativas de censura judicial. Tínhamos pensamentos de criação de conselhos de análise e de conteúdo, mas que eram discussões que acabavam não seguindo adiante por conta de uma cultura de liberdade que a gente tinha naquele momento. Havia também um ponto que era crucial: a gente falava de liberdade como um antagonista da censura, como um antagonista da restrição. Hoje, o que a gente tem é uma guerra de narrativas sobre o que é liberdade. E isso faz com que a liberdade de expressão, no conceito que está colocado na Constituição de 1988, possa sofrer algum tipo de ameaça.

Palavra Aberta – Estamos em um ambiente de pandemia e, agora, também de uma guerra com grandes repercussões, e tivemos muita restrição às liberdades nesta situação. O que esses cenários nos trouxeram de novidade em temos de desinformação e que precisamos estar atentos?

Patricia Blanco – A pandemia, que ainda não acabou, nos mostrou uma realidade extremamente preocupante para todos nós que foi o avanço de conteúdos desinformativos que circularam e confundiram e ainda confundem a população – hoje um pouco menos do que foi logo nos começo, lá em fevereiro de 2020 quando a própria OMS cunhou o termo infodemia para explicar que, além da pandemia de coronavírus, nós estávamos vivendo uma profusão de desinformação em relação à pandemia que era tão grave quanto a própria pandemia. Essa infodemia causou em muitos momentos o efeito de não somente confundir a população sobre o melhor tratamento, sobre o que estava de fato acontecendo, mas também trazer questionamentos em relação à atuação das autoridades. Então a gente teve ali, sobretudo no começo de 2020, uma avalanche de informações desencontradas, de pessoas que estariam gravando áudios e passando para frente opiniões travestidas de fatos. Isso fez com que a população ficasse confusa e, principalmente, desacreditando de fontes oficiais porque a gente tinha e ainda tem um cenário no qual algumas autoridades passaram também a defender tratamentos que não tinha comprovação, combater a ideia das vacinas… então a gente tinha ali um cenário bastante preocupante em relação às informações corretas em relação à pandemia. No caso da guerra, isso também se mostra verdadeiro na medida em que temos dois líderes de países opositores que estão se enfrentando e que passam informações conforme os seus pontos de vista, enquanto um deles acaba atuando como um grande propagador de desinformação na medida em que restringe, não permite que haja uma cobertura livre do que está acontecendo com seu país. Então o que a gente vê é uma postura extremamente restritiva à liberdade imprensa, principalmente, mas também de liberdade de expressão dos indivíduos, onde você não consegue checar a informação se não aquela oficialmente divulgada por determinada figura. Nesse contexto, não podemos mais abrir mão de educar midiaticamente a sociedade para que isso empodere o cidadão, para que ele possa ir atrás de informações confiáveis e ele decidir por ele mesmo, que ele consiga construir a própria opinião baseada em fatos e não em narrativas colocadas por outros.

Palavra Aberta – Na experiência do Palavra Aberta com o Educamídia, dá para dizer que o brasileiro resiste muito a aceitar que tem déficit de educação midiática?

Patricia Blanco – Até o próprio termo “educação midiática” é um termo relativamente novo no sentido de ser popularizado. Há uma pesquisa acadêmica muito aprofundada sobre o termo, mas estava restrito à academia. Na medida em que a gente começa a disseminar o conceito da educação midiática e a necessidade de nós próprios, enquanto sociedade, nos educarmos midiaticamente, a gente começa a perceber um avanço na sociedade em relação a isso. O que percebemos também é que temos um nível de educação midiática na sociedade muito baixo por falta de uma série de questões que a gente nunca deu atenção. Por exemplo, um ponto que é relevante e foi motivo até de uma pesquisa da OCDE no ano passado. O estudo mostrou que 7 entre cada 10 jovens brasileiros não sabem diferenciar fatos de opinião. Se nós ampliarmos isso para a sociedade como um todo é muito provável que pelo menos 50% da população brasileira não consigam fazer essa diferenciação. Nós todos, enquanto sociedade brasileira e mundial, crescemos tendo os veículos de comunicação como fontes de informação que já traziam as notícias editadas, com a curadoria feita, com a checagem também feita. Nós passamos a acreditar que toda a informação que a gente recebia vinha com esse filtro do editor. E, na verdade, quando a gente tem um avanço na produção de conteúdo, onde qualquer cidadão, qualquer indivíduo pode produzir conteúdo, não mudamos a chave para questionar a informação que vem até mim. Trata-se de um processo de criar um novo olhar para a forma como consumimos informação e não simplesmente levar em consideração que aquilo já teve uma checagem prévia, que já foi editada, que já teve o trabalho do jornalista. Então é um processo em andamento. Primeiro temos de admitir que precisamos saber como é feita a notícia, como ela é produzida, como ela chega até a gente, como essa informação foi tratada. Ser midiaticamente educado é um processo em transformação.

Palavra Aberta – As organizações jornalísticas falham ao não levar corretamente à sua audiência como é o processo de produção das notícias?

Patricia Blanco – Não houve uma falha, mas um entendimento de que explicar isso para o consumidor de notícias não era necessário. Os veículos de comunicação já partiam do pressuposto que o cidadão sabia como a notícia era produzida, como aquela reportagem tinha sido feita, como aquela matéria tinha sido apurada, como aquela informação tinha sido transformada em notícia de um fato. Por muito tempo os jornalistas fizeram jornalismo para eles mesmos, sem pensar se aquela informação estava sendo bem interpretada ou estava chegando de forma mastigada para a sociedade como um todo. E aí acho que um momento de aprendizagem para todos nós… o mundo e a forma como nós nos comunicamos mudaram radicalmente. Um veículo de comunicação dez anos atrás seguia um método jornalístico e um método de publicação que, de lá para cá, mudaram radicalmente, e nós como sociedade falhamos em dizer para o consumidor de notícias que o mundo da comunicação mudou. Agora, ao invés de um produtor de conteúdo você tem milhares, e é preciso saber diferenciar quem é quem nesse mundo de informação.

Palavra Aberta – Na eleição de 2018 houve uma enxurrada de notícias falsas distribuídas de forma massiva. É possível que este cenário se repita em 2022, ano eleitoral?

Patricia Blanco – Acho que teremos um cenário bastante preocupante… já estamos vivendo um cenário bastante preocupante, principalmente com uma escalada de discursos agressivos em relação ao ambiente político. De 2018 para cá, nós evoluímos muito na percepção de que, sim, existe desinformação, sim, há tentativas de manipular o resultado da eleição a partir de discursos falaciosos, sim, há ferramentas que precisam ser banidas ou até métodos que precisam ser banidos da campanha eleitoral, como por exemplo o uso de distribuição em massa via WhatsApp e a comercialização de contatos. As próprias campanhas têm que ser responsáveis de não comprar estas listas, de não fazerem distribuições automatizadas na época de campanha. Mas ao mesmo tempo a gente ainda vive em um ambiente de alta polarização. Neste ambiente, corremos o risco de ver campanhas brigando entre elas e construindo narrativas falsas em relação ao candidato opositor. Então é preciso alertar o cidadão para que ele cheque as informações antes de passar para frente e antes de acreditar em tudo que ele lê. Que ele tenha uma atitude proativa em relação à informação e não que ele saia acreditando em tudo que ele recebeu em seu WhatsApp ou via sua rede social. Mais do que isso, a gente precisa fazer com que o cidadão entenda que ele também é responsável nesse ambiente informacional. Do mesmo jeito que a internet e as redes sociais nos deram muito espaço para que a gente possa colocar nossos pontos de vista, para que a gente possa colocar nossas ideias e nossas opiniões, de exercer a nossa liberdade de expressão, por outro lado também temos a responsabilidade de não passar informações falsas para frente. Trata-se de uma questão ética, de responsabilidade.

Palavra Aberta – Quais são hoje os principais tópicos na agenda de debate sobre a liberdade de expressão no Brasil?

Patrícia Blanco – Em primeiro lugar é a defesa intransigente da liberdade de expressão como um direito fundamental dentro do que está previsto no artigo 5º da Constituição brasileira. A gente entende que a liberdade de expressão, por ser cláusula pétrea e estar ali como um direito fundamental, é respaldada por todo arcabouço jurídico legal do Brasil, e ela precisa ser defendida e promovida a todo e a qualquer momento. Um dos pontos do trabalho do Palavra Aberta para 2022 é mostrar que a liberdade de expressão é plena, tem todo este espaço consolidado na Constituição de 1988, mas ela não permite tudo. A liberdade de expressão não pode ser usada como um escudo de proteção para a prática de crimes, como intolerância, racismo, ações preconceituosas, discriminação de gênero ou qualquer outro tipo, injúria, calúnia, difamação ou qualquer outro tipo de crime. Este é um tema fundamental que a gente vem trabalhando ao longo dos anos, mas que este ano a gente precisa incorporar e trabalhar ainda mais. Temos uma liberdade de expressão que permite muitas coisas, mas não permite tudo. O segundo ponto é também a defesa da liberdade de imprensa. A gente precisa entender que um país democrático sem liberdade de imprensa não consegue se desenvolver no âmbito da democracia. É preciso uma imprensa profissional forte que traga informações corretas, bem apuradas, que mostre os pontos de vista diferentes, que seja uma imprensa plural e que seja valorizada pelo cidadão. O que a gente não pode ver é, por exemplo, um aumento expressivo no número de ataques contra jornalistas, principalmente as mulheres. A gente não pode ver tentativas de cerceamento ao trabalho da imprensa. A gente tem visto, por exemplo, em cobertura de eventos onde equipes jornalísticas são apedrejadas, são impedidas de fazer coberturas. Então a gente precisa mostrar para a sociedade, fazer com que a sociedade entenda a importância da liberdade de imprensa não para o veículo de comunicação, mas para ele enquanto cidadão vivendo em uma país democrático. O terceiro eixo fundamental é o desenvolvimento da educação midiática como uma forma de empoderamento do cidadão, desde os primeiros anos na escola para que ele consiga interpretar corretamente as informações e com isso participar ativamente do ambiente conectado.

 

 

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