A verdade e o ressentimento entre a razão e a força bruta

A verdade e o ressentimento entre a razão e a força bruta 630 414 Instituto Palavra Aberta

Carlos Alves Muller

“Muera la inteligencia!
Venceréis pero no convenceréis!”

Este duelo verbal é lembrado com frequência quando se trata da Guerra Civil Espanhola ou como exemplo de atitudes em defesa da razão frente à força bruta, dos liberais diante dos autoritários. O cenário original era o Paraninfo (Salão de Atos) da Universidade de Salamanca (foto), no dia 12 de outubro de 1936. A primeira estocada foi dada pelo general José Millán Astray e o contragolpe foi desferido pelo filósofo Miguel de Unamuno, reitor da universidade, a mais antiga da Espanha.

O teor e o contexto desse enfrentamento, e o que Unamuno escreveu e disse a interlocutores depois dele ajudam a entender o muito que há além da atual discussão sobre notícias falsas e manipulação da informação. Ajudam, também, a refletir sobre o momento que o Brasil e outros países vivem quando a democracia parece ameaçada por uma maneira de fazer política em que a falta de solidariedade, a mistificação e o ressentimento adquirem extraordinária proeminência.

Millán Astray era um dos mais radicais entre os militares que se sublevaram contra o governo republicano no dia 18 de julho de 1936. Criador da Legião (“Tercio de Extranjeros” inspirada na Legião Estrangeira francesa), veterano da guerra de Independência das Filipinas e da Guerra no Marrocos, onde foi ferido gravemente quatro vezes, perdeu um braço e um olho e parte da mandíbula, Millán Astray, que estava cercado por falangistas (os fascistas espanhóis), tinha um ar sinistro e agressivo. Unamuno o desprezava e segundo testemunhas o comparou sarcasticamente a Cervantes, que também perdeu um braço em combate.

Unamuno foi socialista na juventude. Filosoficamente liberal, proclamou a república em Salamanca, mas se desencantou com o governo republicano de Madri e apoiou a revolta, manifestando sua confiança pessoal no General Franco, líder do movimento rebelde.
Nos menos de três meses transcorridos entre o início do levante e o incidente com Millán Astray, no Salão de Atos, que presidiu como reitor, mas também na condição de representante oficial de Franco, Unamuno agiu publicamente de uma forma e privadamente da maneira oposta.

Publicamente, para decepção dos republicanos, o filósofo assumiu compromissos crescentes com os rebeldes, cunhando expressões que até hoje integram o discurso de extrema direita em todo o mundo com a noção de “defesa da civilização ocidental cristã”. Tornou-se, inclusive, presidente da ignominiosa “Comissão Depuradora” encarregada de propor a exclusão de liberais, maçons e demais partidários do governo republicano do quadro universitário, algo que equivalia a encaminhar os expurgados à prisão ou à morte. Esse comportamento levou as autoridades de Madri a destituí-lo da reitoria vitalícia, cargo para o qual seria reconduzido dias depois pelos rebeldes.

Privadamente, Unamuno foi se distanciando dos rebeldes, mas disso só souberam algumas pessoas muito próximas, os destinatários de algumas cartas e jornalistas que o entrevistaram todos depois do enfrentamento com Millán Astray. Há, principalmente, um conjunto de anotações em papéis avulsos, escritas entre 02 de agosto e 26 de novembro, por ele agrupadas com a evidente intenção de escrever um livro retomando, no contexto da Guerra Civil, algumas das reflexões de seu “Del sentimento trágico de la vida”, de 1912. Desde o início, essas anotações foram intituladas “El resentimiento trágico de la vida – Notas sobre la revolución y guerra civil españolas” (reproduzidas em edição fac-similar em livro editado por dois netos em 1991).

As notas provam que intimamente vinha se distanciando dos franquistas, radicalizando seu repúdio à sua brutalidade (também ao comportamento dos governistas na guerra, em particular de Millán Astray) e buscando as razões mais profundas da guerra civil. O choque com o general ocorreu numa solenidade alusiva ao descobrimento da América (12 de outubro) que na Espanha e em diversos países da América Latina era celebrado absurdamente como “O Dia da Raça”.

Unamuno não escreveu um discurso. Ao chegar à Universidade, pediu ao vice-reitor que conduzisse a cerimônia porque não pretendia falar por temer ser inconveniente. Sua indignação com o que ouvia dos demais integrantes da mesa – outros professores, o general e Carmen Polo (esposa de Franco) – o levou a fazer algumas anotações num envelope que tinha no bolso. Esse envelope, que ainda existe, continha o pedido da esposa de um amigo pastor protestante, preso por maçom e posteriormente fuzilado por isso – para que intercedesse em seu favor. Estas poucas palavras, junto com as notas pensadas para o livro, mostram que, quando o filósofo decidiu tomar a palavra, não foi um ex-abrupto.

“Notícia falsa” – frase edificante, mas inverídica?

As duas frases que abrem este texto são pronunciadas no início do trailer oficial do filme “La Isla del Viento”, uma cinebiografia lançada em 2016, coincidindo com os 80 anos da morte de Unamuno (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BIDgkbr2_lA&feature=youtu.be). Uma versão mais detalhada pode ser encontrada no livro “A Guerra Civil Espanhola”, do historiador britânico Hugh Thomas (há edição brasileira esgotada). Na versão em espanhol, “ao se levantar para encerrar o ato, disse: “Estais esperando minhas palavras. Me conheceis bem e sabeis que sou incapaz de permanecer em silêncio. Às vezes, ficar calado equivale a mentir. Porque o silêncio pode ser interpretado com aquiescência”. Em seguida, Unamuno teria criticado trechos dos discursos bajuladores dos que o antecederam e se referido à mutilação do general como algo que a guerra multiplicava. Segundo Thomas,

“Millán Astray não pode se conter por mais tempo. ‘Morram os intelectuais! – gritou. Viva a morte!’ Este grito foi acompanhado em coro pelos falangistas… ‘Abaixo os falsos intelectuais! Traidores!, gritou José María Pemán [um dos professores que haviam antecedido o reitor] desejoso de limar as arestas… mas Unamuno continuou: ‘Este é o templo da inteligência. Eu sou seu sumo sacerdote. Estais profanando seu sagrado recinto. Vencereis, porque tendes força bruta de sobra. Mas não convencereis. Para convencer é preciso persuadir. E para persuadir necessitais algo que lhes falta: razão e direito na luta.”

O evento não foi gravado nem taquigrafado. Todas as versões a respeito baseiam-se em dois relatos feitos anos depois por pessoas que não estavam no local, tendo recolhido testemunhos de terceiros. O livro de Thomas também foi escrito anos depois e, como ele próprio admitiu em entrevista ao jornal espanhol El País em 25/11/2001, embora tenha entrevistado muitas pessoas que participaram da guerra civil de ambos os lados, “a contribuição mais importante foi da grande sala redonda de leitura do British Museum” (sic). Provavelmente foi lá que ele encontrou um dos relatos mencionados anteriormente, o de Luis Portillo, autor de “Unamuno’s Last Lecture”, publicado na revista cultural inglesa Horizon.

Em maio de 2018, Severiano Delgado Cruz, bibliotecário da Universidade de Salamanca, provocou furor nos meios intelectuais espanhóis ao publicar o artigo “Arqueología de un mito: el acto del 12 de octubre de 1936 en el Paraninfo de la Universidad de Salamanca”, no qual afirma categoricamente que a versão de Portillo, publicada originalmente em dezembro de 1941…

“… tem uma clara intenção literária, não historiográfica. Portillo não tenta descrever objetivamente o ato no Paraninfo, ao qual não assistiu, mas fazer uma recriação literária destinada a sublinhar a brutalidade de Millán Astray, com Unamuno no papel do valente que se atreve a enfrentar o infame militar… Desde o princípio, “Unamuno’s Last Lecture” está pensado como uma representação teatral”.

De fato, no texto publicado pela Horizon, a primeira versão do incidente, (disponível em https://www.pro-europa.eu/europe/707/portillo-luis-unamunos-last-lecture/) Portilho afirma “A peça foi encenada em 12 de outubro de 1936”. Em sua “arqueologia”, Severino Delgado rastreou as possíveis fontes de Portillo, uma vez que, ainda que o discurso de Unamuno por ele “relatado” não ocorreu textualmente, várias das ideias por ele atribuídas ao filósofo eram efetivamente suas e disso há provas e testemunhos.
As provas mais antigas são matérias da imprensa francesa de janeiro de 1937, salomomicamente reproduzidas do “L’Humanité” (comunista) e do “La Croix” (católico) de autoria ou citando pessoas que estiveram com Unamuno meses antes (Unamuno morreu na tarde do dia 31/12/1936). A frase “Essa gente [rebeldes] é contra a inteligência… Os intelectuais são fuzilados. Se eles vencerem, a Espanha, esse país doente, vai se tornar o país dos imbecis.” É uma delas. Outra é “Vencer não é convencer, nem conquistar é converter”. Essa mesma aparece nas notas manuscritas reproduzidas em 1991, assim como “‘Viva a morte!’, grita Millán Astray. O que quer dizer ‘morra a vida’”. Além disso, palavras-chave do suposto discurso constam das anotações no envelope preservado.

A segunda reprodução detalhada do que teria ocorrido no dia 12 de outubro é de Emilio Salcedo, que publicou uma biografia de Unamuno em 1964, após realizar numerosas entrevistas com pessoas que conviveram com o filósofo, várias das quais assistiram a solenidade. Delgado reconhece que essa versão é “fiel, embora forçosamente aproximada” e que é a que deveria ser levada em conta e não a de Portillo. Apesar disso, o que usualmente é tomado como narrativa dos acontecimentos daquele “Día de la Raza” é quase invariavelmente o texto de Thomas/Portillo.

A investigação de Delgado foi recebida com contida satisfação por parte dos herdeiros ideológicos de Franco que sempre sentiram a resposta do filósofo ao general como um eterno “touché”, um lance de esgrima inapelável. Mais curiosa tem sido a reação dos partidários da autenticidade do relato desmascarado de Thomas/Portillo, numa atitude que lembra um estudante flagrado colando na prova, preferindo desqualificar o autor e o teor da “Arqueologia”.

Uns e outros – “hunos e hotros”, como dizia o frasista Unamuno quando se referia aos dois lados da Guerra Incivil (outra expressão dele) – perdem de vista o essencial: As frases podem não ser a versão literal do embate, mas ele ocorreu. Millán Astray pensava o que lhe é atribuído e os franquistas trataram de pôr isso em prática com a brutalidade que os caracterizava. E Unamuno também pensava o que lhe é atribuído. Afirmou isso em mais de uma ocasião. O duelo verbal em questão não é “baseado em fatos reais”. Foi a realidade há 80 anos e continua a ser sempre que autoritários de todas as latitudes tratam de subjugar a inteligência e os intelectuais; empenhados em vencer pela força, sem convencer.

Sentimento e ressentimento trágicos
(o que o debate atual sobre notícia falsa tem a ver com isso?)

“Del sentimento trágico de la vida”, é considerado o mais pessoal dos livros filosóficos de Unamuno porque escrito em meio à sua própria crise existencial. Para ele, o sentimento trágico da vida, a “formação da luta entre a razão e a fé, entre a ciência e religião” é também um sentimento de fome de Deus, de carência de Deus. Crer em Deus é em primeira instância … querer que haja Deus, não poder viver sem ele”.

A voracidade assassina da Guerra Civil, “me põe diante de dois problemas: o de compreender, repensar minha própria obra … e compreender, repensar a Espanha…”. Suas reflexões, quase mnemonicamente anotadas em “El resentimiento trágico de la vida – Notas sobre la revolución y guerra civil españolas”, como anota Carlos Feal, autor do ensaio que acompanha o texto publicado, o levam a ver a Espanha submersa no ressentimento trágico da vida, o que num artigo publicado em outra ocasião Unamuno traduzira por um “sentimento purulento”.

O que vê no conflito é “uma íntima e intestina guerra religiosa de toda Espanha contra si mesma” que, numa perspectiva inversa, nota Feal, “anula as crenças de uns e outros para destacar sua comum falta de fé”. Nas palavras do filósofo, em mais um de seus neologismos, a Espanha está numa Guerra de irreligião”. Essas anotações não têm data, mas aparentemente foram escritas pouco antes ou depois do confronto com Millán Astray.

As implicações filosóficas mais profundas dessas reflexões e o que elas têm de relevante para o mundo em que vivemos hoje podem ser encontradas no relato de um jornalista que só se tornaria célebre décadas depois, mas o visitou no dia 21 de outubro: Nikos Kazantzakis, que viria a ser o autor de “Zorba, o grego” e de “A última tentação de Cristo”, enviado à Espanha para uma reportagem para o jornal “Kathemeriní”.

Kazantzakis, que já conhecia Unamuno, se surpreende ao encontrar um homem subitamente envelhecido e encurvado. Carlos García Santa Cecilia, em “Unamuno, 12 de octubre de 1936 en el paraninfo de Salamanca. El testimonio de Nikos Kazantzakis”, resenha o relato publicado como livro, em grego, em 1937: “A conversa transcorre por territórios comuns para ambos autores: a deterioração da espiritualidade, a ausência de valores da sociedade e a angustia do sacerdote em San Manuel Bento, mártir como exemplo do homem que se vê impelido a fingir o que não crê [em Deus]”.

O livro contém a íntegra da entrevista com Unamuno, que Carlos García Santa Cecilia reproduz. Quando Kazantzakis lhe pergunta “o que devem fazer os que ainda amam o espírito”, a resposta é sombria e atual:

“Nada! – gritou – Nada! O rosto da verdade é terrível! Qual é nosso dever? Esconder a verdade do povo!… Enganar o povo para que os homens tenham a força e o desejo de viver. Se soubessem a verdade, já não poderiam nem quereriam seguir vivendo. O povo necessita de mitos, de ser enganado. Nisto é que se baseiam suas vidas! Veja, escrevi sobre este tema terrível em meu último livro, pegue-o”.

Unamuno não esperou que Kazantzakis tirasse suas próprias conclusões. Foi adiantando:

“San Manuel Bueno, mártir”. “Leia-o e verá. O herói é um padre católico que não crê em Deus, mas luta para difundir no povo a fé que não tem para consolá-lo e que possa viver. Para viver! Porque sabe que sem fé, sem esperança, o povo não pode sobreviver”.

Conta Kazantzakis que Unamuno soltou uma gargalhada sarcástica, desesperada para logo acrescentar “… me interessam os que deixaram de crer. Os que, do púlpito falam de uma fé que já não têm. A tragédia dessa gente é terrível”.
Unamuno havia recuperado uma vitalidade que já não parecia ter, mas Kazantzakis tentou mudar de assunto “porque via o que sofria este lutador de cabelos grisalhos. Mas o ancião não me permitiu”. “Estou só! Gritou outra vez e se levantou. Só como Croce [o também filósofo Benedetto Croce] na Itália!”

A entrevista estava encerrada. No dia seguinte, Unamuno foi destituído da reitoria da Universidade de Salamanca por decreto de Franco. Estava sob prisão domiciliar, não decretada, mas mantida por sentinelas. Morreu na tarde do dia 31 de dezembro diante de um ex-aluno falangista que o visitava. A causa foi atribuída pelos médicos razões naturais associadas à falta de oxigênio devido ao braseiro que aquecia seu quarto naquele dia frio de inverno.

Oitenta e dois anos depois, quando no mundo e no Brasil a inteligência e a democracia são assaltados por mitos e por um ressentimento trágico da vida, devemos seguir o resignado Unamuno que vê a necessidade de enganar o povo para que este sobreviva ou buscar inspiração naquele que diante da apologia da morte pelos violentos afirmou categoricamente a primazia da “razão e [do] direito na luta”?

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