Liberdade: o que é, o que a garante, tendências e no Brasil?

Liberdade: o que é, o que a garante, tendências e no Brasil? 550 345 Instituto Palavra Aberta

* Francisco Viana

A liberdade é conquistada por meio da destruição de um espantalho fabricado sob medida. Adorno

Não farei uma exposição apologética da liberdade. Fazer uma apologia da liberdade seria falar do fetichismo do conceito. A ideia é falar da liberdade em suas diferentes vertentes filosóficas, nas suas virtudes e contradições, nas suas oscilações entre o apelo à racionalidade e o arbítrio da irracionalidade. Não a liberdade como fatalidade ou dádiva, mas como conquista, processo e movimento objetivo das forças sociais.

O núcleo é o mesmo da antiga filosofia: só há liberdade se existe consciência e só existe consciência se houver vontade coletiva. Assim como é impossível pensar numa sociedade organizada sem pensar a liberdade, por outro lado é impossível pensar na organização desta mesma sociedade sem restringir a liberdade.

Entre um extremo e outro situam-se múltiplos conceitos: o horror à liberdade, a romantização da liberdade, o ideal de liberdade, a liberdade transcendental, a liberdade imanente. E, assim, sucessivamente.

Em épocas completas, em sociedades inteiras, faltaram as conceituações e o exercício da liberdade. E, em paralelo, a liberdade evoluiu em escalada irreprimível. Dada a vastidão do tema, vou me concentrar nas liberdades políticas, ao lado das tendências e impasses brasileiros.

Liberdade na ordem, ordem na liberdade

A liberdade é a mediação. Como tal, a liberdade pode nascer da ordem, caso se possa partir do princípio de que a democracia nasce da organização do Estado e, como tal, a ordem vem em primeiro lugar para que exista o progresso. E, de outro lado, a ordem pode nascer da liberdade, o que estaria muito associado aos ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo. Uma, a visão da liberdade nascendo da ordem; nasce da visão positivista do mundo. A outra, a ordem nascida da liberdade; tem sua origem no republicanismo romano que Maquiavel renovou no alvorecer do Renascimento. Seu ponto de partida é o contrato social de Rousseau e a consigna jacobina de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa.

Miticamente, os dois modelos vivem em conflito desde a antiguidade grega onde imperava a ordem de Zeus. O homem como emblema da liberdade é personificado em Prometeu, que trouxe para a terra o conhecimento, o sonho e a vontade de construir o futuro. Ulysses de Dante, não o Ulisses, homérico, como o homem de ação por vontade própria, não por vontade dos deuses, encontra-se no centro das metamorfoses vivificantes, animadoras da vida libertária. Uma visão que se afirma hoje é que na lei, desde que legitimamente emanada da sociedade, encontra-se o fundamento essencial para a igualdade entre os homens.

Liberdade e arbítrio

Desde o Renascimento, a filosofia elege a liberdade como seu interesse mais específico. Contudo, é um princípio antagônico: condena a antiga repressão característica dos soberanos e favorece à nova repressão que vai ganhar forma com a ascensão republicana. Essa dicotomia se expressa nas controversas que terão como centro o conceito de razão, os avanços da ciência, as doutrinas de liberdade individual e, sobretudo, o cheque entre a interioridade do indivíduo e a exterioridade das relações de produção. Assim, os reinos da liberdade e da não-liberdade passam a conviver em choques constantes.

Kant entendia que a liberdade deriva de um valor moral. Hegel a associava à autoconsciência. Como valor moral, teria fortes vínculos à ética do bem comum, do pensar no outro, com raízes no conceito aristotélico de amizade e da comunidade dos amigos. Dependeria, ainda segundo Kant, do homem superar suas “pulsões egóicas” e “inclinações luxuriosas”.

Por estas vertentes, o impulso da liberdade não poderia derivar nem da natureza cega, nem da natureza reprimida. A razão precisaria ser o motor da prática, aliando-a a consciência teórica. Isso é que justifica a existência da filosofia moral. E que fundamenta o princípio de que a liberdade fundamenta-se na ausência de liberdade.

Como consciência, alimenta-se das lembranças dos princípios arcaicos ligados ao fortalecimento do “eu”, exigiria o distanciamento de conceitos divinos de fortalecimento do homem. Em ambos os casos, surge a questão: como ser livre no interior e não ser livre no exterior? É nesse impasse que tropeça a teoria psicanalítica moderna. Seria a liberdade uma não-liberdade, seria a autonomia meramente fictícia?

Mas a liberdade, cuja “realização irrestrita só é possível sob as condições sociais de abundância ilimitada de bens” não é inescapável. Pode desaparecer sem deixar sequer vestígios, a depender das circunstâncias e da vontade dos homens como preconizou Brecht ao dizer que o mau não nasce da não liberdade, mas está contido na própria liberdade. Talvez esteja nessa contradição a prevalência da não liberdade sobre a liberdade ou conflito entre a liberdade como valor universal e, também, as suas limitações.

Os impasses da sociedade de massas

Em termos ideais, a liberdade é uma totalidade. Nesse sentido, seria independência com relação a natureza, às relações de produção e em relação às compulsões ou pulsões, em um sentido mais psicanalítico. Numa sociedade onde o homem fosse livre se poderia pensar até mesmo na ausência de leis pela simples razão da convivência pacifica e ausência de violência na história. Não havendo leis, não haveria criminosos, nem prisões. Seria essa sociedade possível?

O drama é que a sociedade de massas impõe cada vez mais restrições à liberdade. A ameaça da perda da individualidade é constante. Para onde caminharemos: um mundo justo, mas real, ou um mundo injusto, mas falso? Um mundo de tolerância e felicidade ou um mundo intolerante, hostil ao coletivo? Nela contracenam a liberdade e a não liberdade com doutrinas libertárias e opressivas convivendo lado a lado.

Ficam as questões: qual é o caráter inteligível do homem? Existiria natureza humana? Essa natureza depende das circunstâncias em que vive o homem? Colocam em evidência o tema da liberdade de expressão. Qual a sua finalidade? A finalidade é unir os homens, encontrar caminhos comuns, eliminar o grau elevado de contradições na sociedade.

Se houver preponderância da liberdade, a não liberdade recuaria. Ter liberdade torna a vida mais solidária, a transparência se opõe ao princípio dos erros e injustiças, da força e do egoísmo. A finalidade da liberdade é a construção da república, a construção da nação, da convergência. Escreve Adorno, ao tratar da liberdade, que a sociedade promete mas está distante de assegurar: a tese da não-liberdade não anuncia menos que a experiência da história, da não conciliação entre interior e exterior; os homens não são livres porque são escravos do exterior e eles mesmos também são, por sua vez, isto que lhe é exterior. (Adorno, 2009, p. 186)

O problema está em como conciliar as duas liberdades – interior e exterior – de acordo com a vontade geral. Foi esse uso prático da razão que leva ao conceito de liberdade como objetividade. O desafio dentro do desafio é que a consciência não aprende a ser livre por meio apenas da teoria: a prática é indispensável.

À consciência, soma-se a necessidade. Haveria identidade entre consciência e necessidade? Ou a liberdade em meio à necessidade não teria serventia? O Estado e as leis não seriam a encarnação da liberdade e necessidade? Se a prática da liberdade e a necessidade da liberdade são acesas pelo uso da razão humana, a democracia ganha uma finalidade real aliando a contemplação à prática.

E a liberdade pode deixar de ser quase um ente para transformar-se numa possibilidade mediada pelo homem e suas relações morais sociais. O elemento hostil àqueles que preferem a não liberdade, contudo, continuaria sendo a prática.

De maneira oposta à teoria, ela transforma o conceito de liberdade em processo e muda o sentido das estruturas. O vigor do sujeito da mediação é que determinará o alcance a consolidação da cultura da liberdade.

Brasil, tendências e impasses

Emblemático dessas reflexões é o caso brasileiro. Podemos lembrar que o País transitou pacificamente da ditadura para a democracia. E que tem sido portador da liberdade na elaboração da Constituição, nas eleições, nas manifestações públicas, nas leis e diferentes campos de atividades. Claro, é um país insalubre para todos, mas não se pode esquecer que vemos um grande processo de construção democrática.

Não existem varinhas mágicas para acelerá-lo. O que existem são superestruturas sendo recriadas e estruturas sociais se movimentando para ampliar espaços públicos de liberdade. É uma rede multifacetada, complexa, conflitiva, mas que têm na liberdade de expressão e de imprensa peças-chaves.

Entre as novidades, pode-se citar que a liberdade se amplia. Em todas as mídias (impressa, eletrônica e social), os espaços de liberdade se multiplicam. Não existe mais jogo político sem a mídia que tudo sabe, tudo noticia, tudo revela. É uma versão ampliada do antigo Parlamento. Uma formidável ampliação de limites. O trabalho desta e das futuras gerações será a concretização e a modernização das leis.

Os homens no regime de liberdade são considerados iguais e, portanto, merecem oportunidades iguais. A cidadania e o cidadão são, também, encarnações desses novos tempos. O arbítrio saiu de cena, e lá se vão 26 anos. O seu lugar foi tomado pelo livre arbítrio e essa mudança é conflitiva. Às vezes assusta, porque a cultura da não-liberdade entre nós é muito arraigada. Ainda somos ou não um País sebastianista (à espera de um salvador) e pombalino (autoritário e burocrático), mas essas características estão ficando para trás. Sem romantismos, nem idealismos, estamos caminhando, muitas vezes em marcha forçada, rumo ao sol.

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* Francisco Viana é jornalista com mestrado em Filosofia política (PUC-SP) e um dos autores do livro Pensadores da Liberdade – Em torno de um conceito do Instituto Palavra Aberta.

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