Combater a desinformação e práticas autoritárias nunca foi tão importante, diz conselheira do Palavra Aberta

Combater a desinformação e práticas autoritárias nunca foi tão importante, diz conselheira do Palavra Aberta 760 440 Instituto Palavra Aberta

*Crédito da imagem: Arquivo Pessoal

Com o avanço da internet, tornou-se necessário o enfrentamento de uma realidade que, por seus efeitos colaterais, fragilizaria o modelo de negócios do jornalismo e sinalizaria o que mais à frente se transformaria em um problema central à democracia: a desinformação online.

Foi para enfrentar esse cenário desafiador que, em 2010, entidades ligadas às liberdades de imprensa e de expressão e ao direito de anunciar criaram o Instituto Palavra Aberta, lembra Judith Brito, superintendente/presidente do Grupo Folha, membro do Comitê de Gestão do Grupo UOL, conselheira fundadora e integrante do Conselho Diretor da entidade. “Nós não tínhamos clareza sobre o que viria pela frente, que o mundo se tornaria mais complexo e teríamos de enfrentar tamanha desinformação em massa e a disseminação de fake news, um dos grandes problemas deste século. No entanto, percebíamos alguns sinais, até pela nossa constante vigilância na defesa da democracia”, diz Judith em entrevista exclusiva.

Mais à frente, destaca, o instituto passou, de forma inovadora, a estudar, promover e fomentar a educação midiática, por meio do programa EducaMídia. Para ela, uma tarefa fundamental. “Se nós todos, em especial crianças, adolescentes e pessoas de mais idade, não aprendermos a usar de forma correta, responsável, crítica e consciente as novas tecnologias e a identificar o que é informação e o que é desinformação, estaremos correndo sérios riscos no presente e no futuro”, afirma.

De acordo com Judith, o Palavra Aberta chega aos 15 anos mais importante do que nunca, um contraponto a um cenário de crescimento do número de autocracias no planeta e ao avanço de ideias e práticas autoritárias cada vez mais presentes nos países livres, muitas vezes embaladas pela desinformação em massa. Leia abaixo a entrevista.

Instituto Palavra Aberta — Como chegou até você a ideia da criação do Instituto Palavra Aberta e como era o cenário das liberdades de imprensa e de expressão na época?
Judith Brito — Tenho lembrado bastante daquele tempo, afinal são 15 anos emblemáticos e estão, de certa forma, associados aos 30 anos do UOL, que comemoramos em 2026, aos 104 anos da Folha de S.Paulo, completados agora em fevereiro, e à minha história no Grupo Folha – estou há 35 anos na empresa. Em 2010, ano da fundação do Palavra Aberta, eu estava começando o segundo mandato à frente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a internet já produzia impactos. Discutíamos bastante sobre os impactos da atuação das big techs em relação ao nosso modelo de negócio e ao jornalismo. Principalmente sobre a atividade jornalística de qualidade, com endereço e responsabilidade pela produção jornalística, o que envolve jornais, revistas e radiodifusão. Os jornais, em especial, têm essa tradição de editores do jornalismo profissional. Me lembro que, via ANJ, tentamos estabelecer conversas com as principais empresas de tecnologia da época, como Yahoo e Google, para fazer frente a esses impactos. Tentamos algumas estratégias, mas o que se viu foi essas empresas fazendo uso do nosso conteúdo, qualificado e de produção cara, sem a devida remuneração. Essa discussão permanece viva, infelizmente, até hoje.

Palavra Aberta — Naquela época, muitas empresas jornalísticas liberavam boa parte de seus conteúdos gratuitamente, certo? Isso foi um erro?
Judith Brito — Nas empresas em que eu trabalho nunca fizemos isso. O UOL faz uma coisa mista, mas a Folha de S.Paulo nunca liberou seu conteúdo. Mas lembro que, de fato, muitos consultores globais, alguns dos mais importantes, recomendavam liberar a produção jornalística e centrar os esforços na receita de publicidade online, o que absolutamente não se mostrou efetivo para os produtores de conteúdo de qualidade. Essa estratégia equivocada contribuiu, infelizmente, para o fechamento de muitos jornais no Brasil e no mundo. Nós vimos esse impacto na prática, incluindo o poderoso Grupo Abril, que faz uma falta muito grande para o jornalismo profissional. Esse nosso ofício é o principal contraponto a governos, a grandes instituições, um dos pilares da democracia. E é mais importante ainda na atualidade, quando temos o rápido avanço da inteligência artificial generativa, mais ataques à democracia em países livres, principalmente a partir do “trumpismo” nos Estados Unidos, e o aumento de regiões do planeta governadas por autocratas. Dentro dessa tendência, temos cada vez mais ataques à mídia independente e plural. Daí a importância de organizações como o Palavra Aberta.

Palavra Aberta — Isso se deve também ao novo ambiente informacional criado pela internet e redes sociais?
Judith Brito — Obviamente a internet trouxe vantagens inequívocas à sociedade: criação de empregos e possibilidade de manifestação de cada cidadão nos lugares mais remotos do planeta, entre outros. Ao mesmo tempo, deu a todos os cidadãos com acesso à web o papel de produtores de conteúdo, editores, replicadores. E isso é uma mudança muito significativa. Antes, os produtores de conteúdo eram principalmente os editores responsáveis e independentes. No passado e no presente nós somos responsáveis pelo que produzimos e distribuímos, inclusive perante a Justiça – o que não necessariamente acontece com boa parte dos atores hoje na internet. Essa foi, digamos, a grande disrupção, com algumas das graves consequências que estamos vendo agora. Em 2010, é verdade, nós não tínhamos clareza sobre o que viria pela frente, que o mundo se tornaria mais complexo e teríamos de enfrentar tamanha desinformação em massa e a disseminação de fake news, um dos grandes problemas deste século. No entanto, percebíamos alguns sinais, até pela nossa constante vigilância na defesa da democracia. Então, entre as entidades ligadas à preservação das liberdades de imprensa e de expressão, como a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner), a ANJ, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP, hoje ABAP – Espaço de Articulação Coletiva do Ecossistema Publicitário), essa conversa já estava muito presente.  A partir desse diálogo, chegamos à conclusão de que precisávamos de uma instituição, firmemente apoiada por outras entidades, que defendesse as liberdades de imprensa e de expressão e também, com bastante ênfase, o direito de anunciar. Não lembro exatamente de quem foi a ideia, mas recordo de alguns personagens – talvez eu vá ser injusta e esquecer de alguém… mas o Antônio Athayde, o Roberto Muylaert, a Maria Célia Furtado – querida amiga que sugeriu o nome Palavra Aberta –, o Evandro Guimarães, que na época estava no Grupo Globo, o Paulo Tonet Camargo, então na RBS, o Daniel Slaviero, o Luiz Lara e outros. Quem tinha uma certa liderança desse nosso movimento era o querido Sidnei Basile, jornalista que foi vice-presidente da Editora Abril (onde fizemos muitas reuniões), e que infelizmente faleceu de forma prematura. Certa vez, em uma conversa comigo, ele comentou que precisávamos de uma pessoa para responder pela diretoria administrativa, e me falou da Patricia Blanco, que segundo ele era a profissional ideal para a função, com experiência à frente de várias entidades. A indicação foi aceita e a Patricia e sua equipe são hoje um capítulo à parte na história do Palavra Aberta, com enorme habilidade para gerenciar e captar recursos, uma tarefa muito difícil para entidades como a nossa que defende direitos, ideias e valores. Diferente de associações representativas de setores industriais, por exemplo, que contam com recursos fartos.

Palavra Aberta — Foi mais ou nessa época (2008) que passamos a conviver, de forma mais frequente, com assédio judicial em série, a partir do caso da jornalista Elvira Lobato e da Folha de S.Paulo por conta de uma série de reportagens sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, certo?
Judith Brito — O Palavra Aberta foi fundado um pouco depois desse caso. Foram mais de 100 ações espalhadas pelo Brasil inteiro, sempre com o mesmo texto em cada processo. Ou seja, um ataque orquestrado, e nós ganhamos tudo, absolutamente tudo.

Palavra Aberta — E a ideia da educação midiática começou a ser discutida já naquela época?
Judith Brito — Os desafios impostos pela internet e, em seguida, pelas redes sociais, se apresentaram aos poucos. Tínhamos muito claro, naquela época, os desafios ao modelo de negócio do jornalismo profissional, um dos pilares da democracia. Mas não sabíamos, naquela época, que o desafio seria ainda maior. O Palavra Aberta, que já era muito importante na defesa das liberdades de imprensa e de expressão e do direito de anunciar, acabou se apresentando como decisivo no combate à desinformação online em massa, com a veiculação de fake news, o que tem contribuído para a corrosão dos pilares democráticos. E esse combate teve ainda mais efetividade a partir da criação do EducaMídia, programa de educação midiática do instituto. Acredito que hoje este é o principal trabalho do Palavra Aberta. Penso que se nós todos, em especial crianças, adolescentes e pessoas de mais idade, não aprendermos a usar de forma correta, responsável, crítica e consciente as novas tecnologias, para poder identificar o que é informação e o que é desinformação, estaremos correndo sérios riscos no presente e no futuro. O EducaMídia tem essa missão de importância colossal, incluindo a formação de professores das escolas públicas e privadas. O programa contribui para que tenhamos cidadãos bem informados e com responsabilidade para criar e divulgar conteúdos e evitar replicar material desinformativo.

Palavra Aberta — A desinformação é hoje tão sofisticada que todos nós estamos sujeitos a nos transformar em vítima?
Judith Brito — Sem dúvida. Mesmo pessoas com escolaridade alta estão sujeitas a divulgar fake news. Todos nós precisamos aprender, compreender de fato a responsabilidade que é impedir o avanço da desinformação. Deveríamos seguir os passos de alguns países, como a Finlândia, que mantém como obrigatório nas escolas a educação midiática. O que reforça a importância do trabalho de toda a equipe do Palavra Aberta, levando esse aprendizado para as escolas e a outras pessoas por meio de projetos dentro do EducaMídia, mesmo quando há limitação orçamentária. Esse trabalho tem dado visibilidade ao instituto em Brasília, perante o Congresso, o Executivo e o Judiciário.

Palavra Aberta — O jornalismo é um parceiro importante para a educação midiática?
Judith Brito — Com certeza. E isso se traduz, em parte, no apoio que entidades como ANJ, Abert e Aner dão ao Palavra Aberta, que tem conseguido essa interlocução com as instituições. Essa é uma parceria a ser mantida e incrementada.

Palavra Aberta — Quais são os próximos desafios do Palavra Aberta em meio ao acelerado avanço tecnológico?
Judith Brito — Esse mundo digital é fascinante, e temos de estar preparados para aproveitar o que ele tem de melhor. Mas, ao mesmo tempo, precisamos contornar seus efeitos colaterais. A inteligência artificial generativa é um exemplo disso. Mas acho que, ao contrário do que aconteceu no começo da internet, quando fomos pegos meio de surpresa, agora temos conhecimento e ferramentas. E o papel do Palavra Aberta nesse cenário deve ser ampliado, ganhando ainda mais importância, para que façamos uso ético e responsável dessas tecnologias para reforçar os princípios e as instituições democráticas e a cidadania. Temos obrigação de apoiar e engrossar o trabalho que que é feito pelo Palavra Aberta.

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