Jornalistas ainda são vistos como inimigos por boa parte da população, diz presidente da Abraji

Jornalistas ainda são vistos como inimigos por boa parte da população, diz presidente da Abraji 1024 682 Instituto Palavra Aberta

O ano de 2023, após os registros de violência contra jornalistas em 8 de janeiro, foi marcado por uma redução de ataques a profissionais de imprensa, mas essa atividade segue em risco no Brasil, “A gente não recuperou a nossa situação de, por exemplo, cinco anos atrás. Vamos levar muito tempo ainda para que a população em geral pare de ver os jornalistas como inimigos e inimigas”, diz a presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Katia Brembatti, em entrevista ao Palavra Aberta. “Isso ainda não mudou. Isso foi construído ao longo de um tempo e vai levar outro tanto para que a gente consiga sair dessa situação de perigo constante”, destaca. Confira abaixo a entrevista completa levemente editada.

Palavra Aberta – Na última vez que conversamos, em novembro de 2022, você ressaltou que o Brasil vivia um momento sem precedentes na escalada de violência contra jornalistas. Esse triste cenário chegou ao ápice em 8 de janeiro de 2023. O que mudou de lá para cá?

Katia Brembatti – Nos dois meses pós-31 de outubro de 2022, tivemos mais de 70 ataques contra jornalistas, o que dá mais de um ataque por dia. Estávamos, com certeza, em um cenário sem precedentes. E aí vem o 8 de janeiro, que é o ápice deste quadro de violência. Tivemos nos dias 8, 9 e 10 de janeiro do ano passado 45 ataques a jornalistas em apenas 3 dias. É muito! No entanto, depois disso, passamos a viver uma situação de arrefecimento. O que seria esse arrefecimento? No momento em que paramos de ter algumas pessoas nos postos importantes do país incitando esses ataques aos jornalistas, registramos uma diminuição. Isso porque você tem um efeito em cadeia, um efeito cascata. Quando pessoas ocupando postos importantes incitam o ataque à imprensa, temos esse efeito manada. Quando essa situação mudou, a gente teve uma diminuição. Então, o ano de 2023 vai bater vários recordes por uma série de motivos, pontuais, isolados eu diria. Mas a gente não recuperou a nossa situação de, por exemplo, cinco anos atrás. Vamos levar muito tempo ainda para que a população em geral pare de ver os jornalistas como inimigos e inimigas. Isso ainda não mudou. Isso foi construído ao longo de um tempo e vai levar outro tanto para que a gente consiga sair dessa situação de perigo constante. A gente ainda vive uma situação de perigo constante.

Palavra Aberta – Há riscos para a imprensa nas eleições municipais de 2024?

Katia Brembatti – Certamente a gente tem riscos, e por dois motivos. O primeiro é que, tradicionalmente no Brasil – elencadas algumas particularidades brasileiras –, temos essa situação de municípios pequenos, onde atuam principalmente radialistas e comunicadores, em que há aquela questão de dois grupos políticos muito aguerridos. Tipo ou você faz parte de um grupo ou você é contra esse grupo. Essa é uma característica bem marcante no Brasil até por causa da quantidade de municípios pequenos que a gente tem. Isso já vem de longa data, essa característica já existe há bastante tempo, mas nos últimos anos com essa questão de jornalistas sendo alvo, a gente tem muito receio que o período das eleições municipais seja de riscos para jornalistas. É por isso que estamos em conversa com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Aguardamos o agendamento de uma reunião com eles para ver o que é possível fazer, inclusive em conjunto com a Corte, para que a gente tente conter essa possível onda de violência nas eleições municipais de 2024.

Palavra Aberta – No fim de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela responsabilização dos veículos de comunicação por fala de entrevistados. Isso acarreta mais riscos às liberdades de imprensa e de expressão?

Katia Brembatti – Não há consenso sobre isso. Juristas conceituados têm opiniões divergentes sobre os efeitos dessa decisão do STF.  A primeira coisa que é preciso dizer é que nós achamos perigoso o rumo que isso está tomando, porque a gente já enfrenta uma escalada de assédio judicial e de judicialização do trabalho da imprensa. Nossa preocupação é que essa decisão do STF seja interpretada por juízes de primeira instância como um aval para responsabilizar jornalistas em situações que não têm relação com essa decisão do STF. A decisão do STF é muito específica em relação à fala dos entrevistados. E existem coisas que a gente consegue checar sobre o que foi dito e outras coisas que a própria fala do entrevistado em si é a informação a ser passada. Então, por exemplo, eu digo que alguém invadiu a minha casa… se aconteceu alguma coisa dentro da minha casa, eu sou a fonte dessa informação, e quanto disso pode ser checado porque eu sou uma das testemunhas, mais que isso, sou uma das vítimas, uma das pessoas que pode falar sobre isso. Nosso receio é que essa decisão do STF seja usada por magistrados para responsabilizar jornalistas num sentido mais amplo, para além das entrevistas, pelo simples fato de noticiar uma situação que desagrada alguém. Hoje, a Abraji tem um projeto chamado CTRL+X que monitora pedidos de retirada de conteúdo. Foram mais de 5 mil pedidos ao longo dos últimos seis anos. Desses mais de 5 mil pedidos, mais de 3 mil são de políticos, que queriam que algum conteúdo que os desagrade seja tirado da internet. Então, às vezes, o que está em jogo não é o que foi noticiado, mas o descontentamento de alguém com algo que foi noticiado.

Palavra Aberta – Há um movimento para que o STF amenize essa decisão?

Katia Brembatti – Sim, há um movimento bem forte. É importante que se diga, havia antes mesmo da decisão. A partir de agosto e setembro de 2023, quando a gente soube da decisão de transformar esse caso em tese de repercussão geral e, em seguida, houve a marcação do julgamento para 29 de novembro, começamos uma articulação junto aos ministros do STF. A gente falou com o presidente da Corte, o ministro Luís Roberto Barroso, com o ministro Alexandre de Moraes e com outros ministros no sentido de explicar qual era a nossa preocupação. E, depois de tomada a decisão e da repercussão, acredito que muitos deles, perceberam ser preocupante o uso de alguns termos. Três em particular nos preocupam. Seria “indício de injúria”, isso não existe tipificado, “indício concreto de falsidade”, também não dá para saber o que é isso, e “dever de cuidado”. A gente acredita que depois da decisão vários ministros se atentaram ainda mais pelo que poderia ser uma consequência. Acredito que eles estavam mirando já pensando nas eleições municipais desse ano e preocupados com a distribuição de desinformação no período eleitoral, portanto mirando pseudo veículos de comunicação, veículos de comunicação que mimetizam a imprensa para se passar por veículos sérios de comunicação com o objetivo de distribuir desinformação. Acabaram acertando toda a imprensa, e vários deles já sinalizaram em particular que estão dispostos a rever a redação dessa decisão.

Palavra Aberta – O ano de 2023 foi marcado pelo maior uso de inteligência artificial (IA), trazendo fortes desafios ao jornalismo. Este pode ser um ponto gerador de problemas em 2024, marcado por eleições?

Katia Brembatti – A gente acha que essa é uma tendência e mais problemas sim. A medida que o uso desses recursos, principalmente a falsificação de vídeos, por exemplo, se tornem mais verossímeis, acho que vai ser mais complicado a gente conter isso. Deveríamos ter algum tipo de sinalização que aquela imagem é manipulada, mas hoje não existe isso. Já falei com alguns técnicos perguntando se é possível somente ouvindo um áudio, por exemplo, saber se tem alguma sinalização de que esse conteúdo é criado a partir de algum aplicativo de inteligência artificial e a reposta foi não. Então, acho que a gente vai ter mais problema em 2024 sim.

Palavra Aberta – Quais são os outros desafios no âmbito da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão para 2014?

A gente tem uma lista de desafios. E vão entrar mais fortemente no debate por causa das eleições norte-americanas. O período eleitoral nos Estados Unidos costuma puxar essa discussão a nível mundial. Além disso, a gente tem os conflitos mundiais que estão exacerbados. Isso costumam gerar uma discussão sobre a liberdade de imprensa versus liberdade de expressão e outras liberdades. No Brasil, em particular, minha sensação é que a gente precisa discutir os conceitos de liberdade de expressão versus discurso de ódio. Liberdade de expressão também como um direito coletivo. Hoje em dia ela é muito evocada para direitos individuais. E é importante lembrar que a liberdade de expressão em sua essência tem uma raiz muito mais de uma preocupação com o coletivo e isso precisa estar no radar da agenda nacional, mas atualmente não está no radar de muita gente. A liberdade de expressão hoje em dia tem sido evocada por quem quer ter seu direito de se expressar individualmente, e essas pessoas, muitas vezes, querem é manifestar um discurso de ódio ou até um crime, tal como racismo, e daí ela é usada no sentido individual: “Você está tolhendo a minha liberdade de expressão”, dizem. Mas a liberdade de expressão é um direito coletivo, que é o direito da sociedade se expressar. Claro que ela tem uma parcela individual, mas como liberdade ela é um direito difuso, de todos. É aquela história de eu não concordar com algo, mas defender o direito dessa pessoa de se expressar. A liberdade de expressão como essência é um direito de todos.

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