
“O Brasil ainda não compreende o papel da imprensa na democracia”, afirma Tais Gasparian
“O Brasil ainda não compreende o papel da imprensa na democracia”, afirma Tais Gasparian https://www.palavraaberta.org.br/v3/images/whatsapp-image-2025-10-01-at-172154-1024x683.jpeg 1024 683 Instituto Palavra Aberta https://www.palavraaberta.org.br/v3/images/whatsapp-image-2025-10-01-at-172154-1024x683.jpeg*Crédito da imagem: Kiko Mazzoni
A advogada Tais Gasparian, uma das principais referências no debate sobre liberdade de imprensa e direito da comunicação no Brasil e cofundadora e diretora do Instituto Tornavoz, que oferece defesa jurídica especializada em livre expressão para quem sofre processos e não tem recursos para contratar defesa especializada, avalia que o recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o Marco Civil da Internet manteve o espírito democrático da lei e trouxe mais clareza sobre a responsabilidade de plataformas digitais. Para ela, a decisão preserva a segurança jurídica dos veículos de comunicação, mas impõe desafios às big techs.
Gasparian alerta, no entanto, que o país ainda precisa amadurecer o debate público sobre liberdade de expressão. “Pouca gente sabe qual é, de fato, o papel da imprensa em uma democracia”, afirma. E defende que não se regule conteúdo.
Na entrevista, a advogada também chama atenção para dois temas que considera urgentes: a inteligência artificial e o assédio judicial contra jornalistas. No primeiro caso, vê uma repetição em escala ampliada de problemas antigos, como o uso indevido de conteúdo jornalístico sem remuneração. “Concorrência pode existir, mas não pode ser desleal”, reforça. Já sobre o assédio judicial, defende uma definição mais ampla para coibir abusos, especialmente contra veículos menores e especializados.
Com uma atuação histórica em defesa da liberdade de expressão, Gasparian afirma que os desafios atuais exigem equilíbrio entre inovação tecnológica e preservação do trabalho jornalístico. “Não se pode apagar a criação original em nome da inovação. Precisamos valorizar a autoria e o interesse público da informação”, conclui.
Leia abaixo a entrevista editada.
Instituto Palavra Aberta: O Marco Civil da Internet foi bastante discutido ao longo dos anos. Na sua avaliação, a decisão recente do STF preserva o espírito democrático da lei? Quais os principais impactos para o jornalismo e para os veículos de comunicação?
Tais Gasparian: Apesar das dificuldades que temos enfrentado em relação à liberdade de expressão e de imprensa, eu considero que o julgamento foi positivo. Havia uma expectativa muito negativa de que poderia ser um resultado desastroso, mas, no fim, o Supremo manteve o espírito do Marco Civil. O Marco Civil cita diversas vezes a liberdade de expressão, o que é extremamente importante. Ele surgiu como contraponto a uma corrente que queria criminalizar a internet. Ao invés de criminalizar, a lei estabeleceu direitos e deveres dos internautas. Isso foi uma grande conquista.
Instituto Palavra Aberta: Muito se falou do artigo 19, mas pouco se destacou que o Marco Civil como um todo trouxe regramentos saudáveis para a internet. Você considera que essa visão mais ampla ainda se mantém válida?
Tais Gasparian: Sim. O Marco Civil trata de neutralidade da rede, retenção de dados, jurisdição e dados pessoais. Mas a grande questão sempre foi a responsabilidade dos provedores. Antes, a regra era clara: só ordem judicial poderia determinar a remoção de conteúdo, com exceção de casos envolvendo nudez ou atos sexuais. Agora, o cenário ficou mais complexo, com quatro possibilidades: remoção só por ordem judicial, remoção por notificação extrajudicial, responsabilidade automática e aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Para as plataformas, o cenário ficou mais pesado. Para a imprensa, entretanto, a regra de ofensas à honra continua dependendo de ordem judicial, o que preserva a segurança dos veículos.
Instituto Palavra Aberta: Depois da decisão do Supremo, você percebe mudanças práticas no ambiente digital, especialmente diante da polarização crescente e de episódios recentes de discurso de ódio ou manifestações controversas nas redes sociais?
Tais Gasparian: Ainda é cedo para falar em mudanças. O que percebo é que o debate público continua muito polarizado e, muitas vezes, agressivo. Mas a decisão do Supremo dá mais clareza sobre a responsabilidade dos diferentes atores. Para os veículos de imprensa, não houve grandes alterações. Para as plataformas, a situação exige mais cuidado.
Instituto Palavra Aberta: Diante de situações de fala excessiva ou ofensiva, você acredita que precisamos de novas regras para civilizar os debates nas redes ou é melhor preservar a liberdade total?
Tais Gasparian: Precisamos diferenciar regulação de condutas de regulação de conteúdo. Regular o conteúdo em si seria uma solução pobre e perigosa, porque os valores da sociedade mudam com o tempo. O que precisamos é de mais debate público sobre liberdade de expressão e imprensa, inclusive no Judiciário e na sociedade civil. Não se pode criar leis a partir de um episódio isolado. O que precisamos é discutir profundamente os limites e a importância da liberdade de expressão.
Instituto Palavra Aberta: Na sua visão, até que ponto é possível regular o funcionamento das plataformas sem cair no risco de censura de conteúdo?
Tais Gasparian: Acredito que não devemos regular o conteúdo publicado. Isso levaria a censura e engessaria o debate público. O que se deve discutir são os deveres das plataformas em termos de responsabilidade, transparência e combate a abusos sistêmicos, mas sem avançar para uma regulação do discurso. É evidente que aqui estou excetuando conteúdos que ilícitos, tais como conteúdos racistas, misóginos ou de qualquer modo discriminatórios. Fora esses conteúdos que já são regulados pelo ordenamento jurídico, e que não devem, de modo algum prevalecer, entendo que os demais não sejam regulados.
Instituto Palavra Aberta: O Brasil ainda tem uma tradição autoritária e um desconhecimento sobre liberdade de imprensa e expressão. Que caminhos você enxerga para aprofundar esse debate e conscientizar a sociedade?
Tais Gasparian: É fundamental estimular mais discussões. O Judiciário, os advogados e a sociedade civil precisam debater mais o que é liberdade de expressão e qual a função da imprensa. Hoje, pouca gente sabe de fato qual o papel da imprensa na democracia. Precisamos de um esforço maior de educação cívica sobre o tema.
Instituto Palavra Aberta: Avançando para o tema da inteligência artificial: você acredita que a IA representa uma ameaça concreta ao jornalismo, especialmente em relação a direitos autorais e uso indevido de conteúdo produzido por veículos?
Tais Gasparian: A inteligência artificial amplia questões que já existiam antes. Já vimos disputas jurídicas com empresas de clipping que usavam conteúdo de jornais sem pagar. A IA pode reproduzir o mesmo problema em escala maior. Direitos autorais não podem ser ignorados. O trabalho jornalístico tem valor e não pode ser simplesmente apropriado.
Instituto Palavra Aberta: Historicamente, já tivemos disputas jurídicas em torno de clipping e uso não autorizado de conteúdo jornalístico. Como esse precedente pode nos ajudar a enfrentar os desafios atuais da IA?
Tais Gasparian: Esses casos de clipping mostraram que concorrência desleal existe quando se usa conteúdo de outro sem autorização ou remuneração. O mesmo raciocínio deve ser aplicado à inteligência artificial. Concorrência pode existir, mas não pode ser desleal. É preciso defender judicialmente os direitos dos veículos, como já fizemos no passado.
Instituto Palavra Aberta: O que pode ser feito para valorizar e proteger o trabalho jornalístico em meio ao avanço tecnológico, sem impedir a inovação?
Tais Gasparian: O caminho é encontrar equilíbrio. Não se pode apagar a criação original em nome da inovação. Precisamos desenvolver mecanismos que preservem a autoria, os direitos autorais e a relevância do jornalismo, ao mesmo tempo em que aproveitamos o que há de positivo na inteligência artificial.
Instituto Palavra Aberta: Sobre o assédio judicial: quais mudanças vocês estão propondo junto ao Observatório do Ministério da Justiça e por que essa definição mais ampla é importante para proteger jornalistas e veículos?
Tais Gasparian: O assédio judicial é um problema sério, que enfrento há anos. A ADI que ajuizamos no Supremo não resolve tudo, mas foi um marco importante porque trouxe o tema à discussão pública. Agora estamos trabalhando para ampliar a definição de assédio judicial, de forma a abarcar outros tipos de abusos que não ficaram contemplados na decisão.
Instituto Palavra Aberta: Como o conceito de assédio judicial pode abranger questões como desproporção das ações, disparidade de forças econômicas e impacto sobre veículos menores, especialmente os locais ou especializados, como os que cobrem meio ambiente?
Tais Gasparian: Exatamente. Muitas vezes quem move esses processos são pessoas ou organizações poderosas contra pequenos veículos ou jornalistas. Isso gera uma assimetria opressiva. Precisamos que a definição de assédio judicial reconheça essa desproporção, o efeito inibidor e o impacto no direito da sociedade de ser informada.
Instituto Palavra Aberta: O que falta para consolidarmos uma jurisprudência mais clara e protetiva em relação ao assédio judicial contra jornalistas no Brasil?
Tais Gasparian: Ainda falta amadurecimento jurídico e político. O julgamento do STF ajudou a democratizar o debate, mas precisamos que conceitos como interesse público, proporcionalidade e direito à informação sejam incorporados de forma mais ampla. Só assim conseguiremos proteger de fato o jornalismo, especialmente o local e especializado, que é o mais vulnerável.