Entrevista especial 35 anos da Constituição: Oscar Vilhena Vieira

Entrevista especial 35 anos da Constituição: Oscar Vilhena Vieira 1024 683 Instituto Palavra Aberta

Lidar com o fenômeno daqueles que abusam dos direitos fundamentais com a finalidade de suprimi-los é um enorme desafio para as democracias contemporâneas, especialmente quando esses discursos proliferam pelas redes sociais, deseditoralizadas, e pautadas por algoritmos. A afirmação é de Oscar Vilhena Vieira, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP, ao comentar a ascensão, nos últimos anos, de movimentos de ultradireita ao redor do mundo que reivindicam um direito absoluto à liberdade de expressão, como uma arma para ofender e discriminar grupos historicamente discriminados, além de conspirar contra a própria democracia. “A tarefa não é nada fácil. Encontrar os parâmetros corretos para que a regulação da liberdade de expressão, especialmente nas redes sociais, não fragilize o ambiente democrático se coloca como o maior desafio nesse campo”, diz em entrevista ao site do Instituto Palavra Aberta. Confira abaixo a conversa na íntegra.

Instituto Palavra Aberta – Comemoramos neste ano os 35 anos da Constituição Federal. Qual a contribuição da carta constitucional para a manutenção e desenvolvimento dos princípios que garantem à Nação o exercício da liberdade de expressão? 

Oscar Vilhena Vieira – A Constituição de 1988, que selou o processo de transição do regime autoritário para a democracia, no Brasil, estabeleceu um robusto regime de liberdade de expressão. Em seu artigo 5º, assegurou a liberdade de pensamento, de consciência, de manifestação, desde que pacífica, conferindo proteção especial a “livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença”. Essa proteção é reforçada pelo artigo 220 da Constituição Federal, que cuida da “Comunicação Social”, que proíbe à lei o estabelecimento de qualquer embaraço à plena liberdade de informação. A Constituição tratou a liberdade de expressão e informação não apenas como um direito individual, voltado a assegurar a liberdade de cada um se expressar, mas como uma peça central do edifício democrático. Desta maneira, a liberdade de expressão não está sujeita a processo ordinários de ponderação quando colidir com outros direitos. Evidente que não se trata de um direito absoluto, mas não se pode restringi-la sob a simples justificativa de que colide com outros direitos e interesses. A liberdade de expressão é uma contrapartida do direito de ser informado. Nesse sentido, é constitutiva da própria ideia de uma democracia pluralista, razão pela qual a liberdade de expressão mereceu por parte da Constituição uma proteção especial.

Instituto Palavra Aberta – Qual a importância de valorizar a Constituição no momento em que as principais instituições brasileiras estão sob ataque, com ápice no dia 8 de janeiro?

Oscar Vilhena Vieira – A Constituição nada mais é do que uma regra superior que aspira habilitar o jogo democrático, regular o exercício e a alternância no poder, assim como estabelecer, por intermédio dos direitos fundamentais, os princípios de justiça que devem reger as relações entre o Estados e a sociedade, assim como dos indivíduos entre si. Por estabelecer os limites nos quais o poder deve ser exercido, mesmo que por parte da autoridade democraticamente eleita, as constituições democráticas têm sido um alvo preferencial de populistas e governantes autoritários em geral. A liberdade de expressão, o pluralismo político, os mecanismos de freios e contrapesos, arquitetados pela Constituição democrática, são vistos por populistas autoritários como uma camisa de força que os impediria de realizar a autêntica vontade popular, da qual se colocam como único e verdadeiro intérprete.

(Jair) Bolsonaro seguiu à risca o roteiro dos populistas autoritários de seu tempo. Promoveu a polarização visceral, que busca suprimir o pluralismo, conspirou contra a Constituição e suas instituições, inclusive o próprio sistema eleitoral, além de incitar os militares contra as instituições do Estado democrático de direito. Os atos de 8 de janeiro, são resultado desse longo processo de incitação promovido por Bolsonaro e seus apoiadores. Nesse sentido, empregaram de forma abusiva da palavra para incitar crimes contra as instituições do Estado democrático de direito, previstos em nosso Código Penal, devendo por isso ser responsabilizados.

É importante destacar que a liberdade de expressão é muito ampla no Brasil, assim como o direito de livre manifestação. Nesse sentido, podemos nos manifestar inclusive contra a democracia, contra o sistema econômico capitalista, ou qualquer outra coisa. Há, porém, alguns delitos de natureza eleitoral, ou mesmo crimes previstos na lei de defesa do Estado Democrático de Direito, concebidos para proteger as instituições da democracia, não daqueles que as criticam, mas sim daqueles que buscam desestabilizá-las. Embora a maior parte desses crimes exige violência ou grave ameaça, podem envolver o uso da palavra como elemento determinante. O crime de incitação às Forças Armadas para agirem contra os poderes constitucionais, previsto no parágrafo único do artigo 286 do Código Penal, é exemplo desse tipo de restrição à liberdade de expressão em nome da democracia.

Dito isso, é sempre importante reafirmar que qualquer forma de restrição ao direito da liberdade de expressão deve ser tratada como exceção e de forma mais restritiva possível, exigindo lei clara que a autorize, assim como uma interpretação restritiva desses dispositivos.

Instituto Palavra Aberta – A legislação brasileira também estabelece limites a essas liberdades. Em boa parte da opinião popular, entretanto, esses limites foram colocados em uma área cinzenta de forma a confundir sua interpretação. Por que há espaço para esse tipo de distorção em pleno século XXI? 

Oscar Vilhena Vieira – De fato, há uma área de penumbra, pois as circunstâncias fáticas têm um impacto muito grande sobre a forma como se deve pensar o regime da liberdade de expressão. Numa sociedade dividida, em que há um grupo minoritário e historicamente discriminado, deve se cuidar para que a liberdade de expressão não seja empregada como instrumento para que os membros desses grupos não permaneçam excluídos e discriminados. Os alemães impõem limitações a falas antissemitas mais elevadas do que muitas outras democracias, o que é compreensível e aceitável, tendo em vista o histórico brutal de perseguição dos judeus naquele país. O Brasil tem elevado barreiras em relação a discursos racistas o que também se justifica, em decorrência de nosso passado escravocrata e do persistente racismo estrutural. E isso é positivo.

Nos últimos anos temos visto uma ascensão de movimentos de ultradireita ao redor do mundo que reivindicam um direito absoluto à liberdade de expressão, como uma arma para ofender e discriminar grupos historicamente discriminados, além de conspirar contra a própria democracia. Lidar com o fenômeno daqueles que abusam dos direitos fundamentais com a finalidade de suprimi-los é um enorme desafio para as democracias contemporâneas, especialmente quando esses discursos proliferam pelas redes sociais, deseditoralizadas, e pautadas por algoritmos. A tarefa não é nada fácil. Encontrar os parâmetros corretos para que a regulação da liberdade de expressão, especialmente nas redes sociais, não fragilize o ambiente democrático se coloca como o maior desafio nesse campo. Daí teremos que ir devagar com o andor, de olharmos com muita atenção a experiência comparada. Diferentemente de outras áreas de conhecimento, o direito não dispõe de laboratórios onde as experiências possam ser testadas. Assim, são as experiências de outros países que devem ser levadas em comparação. O Brasil avançou muito no campo do direito eleitoral. Nossa nova lei de defesa da democracia foi claramente inspirada pela legislação alemã e portuguesa, e sua aplicação tem apresentado bons resultado. Creio que com as redes devemos caminhar com cuidado, para não jogar o bebê com a água do banho. Mas também não devemos negligenciar as ameaças ao regime geral de direitos que a omissão de regular as redes pode ter.

Instituto Palavra Aberta – Como a Justiça brasileira pode contribuir para combater esse cenário?

Oscar Vilhena Vieira – A Justiça brasileira, ao longo dos anos, teve uma postura muito errática em relação à liberdade de expressão. Minha maior crítica se refere ao tratamento da liberdade de expressão como um direito individual como outro qualquer. Assim, toda vez que um juiz começa o julgamento dizendo que o direito à liberdade de expressão não é absoluto, devendo ser ponderado em função de outros direitos, como a privacidade ou a honra (inclusive de autoridades públicas), devemos ficar alertas, pois podemos estar diante de uma sentença que irá “relativizar” a liberdade de expressão. O Supremo, por sua vez, avançou muito nos últimos anos. A liderança firme dos ministros Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia e Luiz Roberto Barroso, colocaram certa ordem no debate de liberdade de expressão. Mas precisamos caminhar muito ainda. Seria fundamental que o Supremo se desse ao trabalho de fixar padrões e testes mais claros, para as diversas circunstâncias onde a questão da liberdade de expressão é invocada.

Instituto Palavra Aberta – É necessário implantar no Brasil uma educação para a democracia? Como? Valorizar a Constituição faz parte desse processo?

Oscar Vilhena Vieira – Não há dúvida que precisamos aperfeiçoar nossa educação para a democracia e para os direitos humanos. Quando me perguntam sobre educação para a democracia sempre lembro o artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que determina que a “educação deve visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana e o fortalecimento dos direitos humanos e das liberdades fundamentais…” Nossa Constituição, por sua vez, fala que a educação deve ser baseada nos princípios da igualdade de condições e acesso à educação, pluralismo e liberdade de ensinar e aprender, gestão democrática, entre outros. Assim, penso que o fundamental não seja dar cursos de democracia, como a minha geração, educada durante o regime militar, tinha curso de educação moral e cívica. O que precisamos é expor às crianças um programa educacional que assegure a formação de seres autônomos, que prezem pela liberdade e pelo respeito mútuo. Evidente que a educação deve assegurar o conhecimento sobre nossas instituições básicas, como a Constituição e a Declaração de Direitos Humanos. Parte do processo de socialização, que ocorre na Escola, é compreender que a sociedade é organizada por regras, e que não podemos impor as nossas visões particulares sobre as outras pessoas, quando estamos falando de direitos humanos. São regras básicas de um convívio civilizado que precisamos aprender respeitar. Como propôs Piaget, ao interpretar o artigo 26 da Declaração Universal, a melhor forma de formar um cidadão que respeite os direitos das demais pessoas é respeitar os direitos dessa criança na sua formação. Assim, creio que devemos fomentar uma educação democrática, plural, onde as crianças aprendam os códigos básicos do respeito ao outro e da responsabilidade pelos próprios atos. A noção que todos são sujeitos de direitos e merecedores de igual respeito e consideração por parte dos demais cria um ambiente de reciprocidade, indispensável para a consolidação de uma sociedade democrática.

 

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