Nosso objetivo é chegar aos diversos rincões do país, diz Taís Gasparian, do Tornavoz

Nosso objetivo é chegar aos diversos rincões do país, diz Taís Gasparian, do Tornavoz 864 631 Instituto Palavra Aberta

📸: Kiko Mazzoni

A advogada especialista na área do direito civil relacionado à mídia, à publicidade e à internet Taís Gasparian e o Instituto Tornavoz, do qual ela é diretora e uma das fundadoras, são os homenageados com o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa de 2022, da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Segundo a entidade, a profissional e a entidade receberão a premiação pela expansão da defesa da liberdade de imprensa em um ambiente de crescentes ameaças e dificuldades ao jornalismo. Em conversa com o Instituto Palavra Aberta, Taís contou sobre o trabalho do Tornavoz, que se propõe a garantir defesa jurídica especializada àqueles que sofrem processos judiciais em razão do exercício da manifestação do pensamento e da expressão, e que tenham dificuldade para contratar e remunerar uma defesa especializada. “A nossa ideia principal é sair do eixo Rio-São Paulo, é chegar aos diversos rincões do país, em lugares que são menos assistidos por advogados com especialidade nesse tema. A gente quer chegar a lugares onde a advocacia especializada nesse tema seja mais escassa, pois é aí que nós entendemos que o nosso trabalho é mais necessário”, diz a advogada. Confira abaixo a entrevista levemente editada.

Taís, como surgiu a ideia do Tornavoz?
Nos tempos atuais, a missão de todos deve ser a defesa da democracia e da liberdade de expressão. Como trabalho há muitos anos na advocacia nesse tema, decidimos – somos cinco mulheres – contribuir nesse segmento, mediante a defesa de jornalistas e veículos de mídia impressa e digital. Veículos de comunicação locais de mídia digital estão muito vulneráveis. Há uma crescente instrumentalização do Poder Judiciário para inibir e intimidar a mídia. Os veículos, sem capacidade econômica ou estrutural de responder ao assedio judicial sofrem demais, e alguns podem até ser fechados. Entendemos então ser relevante proporcionar alguma segurança para jornalistas e para os veículos de mídia, principalmente aqueles que não tem tanta estrutura em seu organograma para contar com advogados e se defender. Entendemos que a imprensa, a mídia em geral e o livre fluxo das informações são essenciais numa democracia, e por essa razão então estamos disponibilizando o que sabemos para defender esse setor.

O público que vocês encontraram era maior do que vocês imaginavam?
Muito. Nós temos bastante contato com a Associação de Jornalismo Digital (Ajor), com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), além da própria Associação Nacional de Jornais (ANJ), o que nos proporciona um canal de comunicação com os veículos. Fizemos o lançamento do Tornavoz num evento que foi promovido pela Ajor, justamente para divulgá-lo para os veículos que seriam o objeto do nosso cuidado. No começo, ficamos muito preocupadas que chegasse uma pilha de situações e que a gente não conseguisse dar continuidade ao trabalho, que ficássemos perdidas. A estrutura é mínima e estamos aos poucos divulgando as atividades do Tornavoz. A demanda revelou-se grande, e foi bom que nós tenhamos sido cuidadosas no lançamento e na divulgação. Até o momento estamos dando conta da demanda. A nossa ideia principal é sair do eixo Rio-São Paulo e chegar aos diversos rincões do país, em lugares que são menos assistidos por advogados com especialidade nesse tema. A gente sabe que a profissão de advogado é bem difundida e tem presença em praticamente todos os municípios, mas a advocacia é muito especializada, assim como a medicina e o setor de serviços. Por essa razão queremos chegar a lugares onde a advocacia especializada nesse tema seja mais escassa, pois é aí que nós entendemos que o nosso trabalho é mais necessário. Também trabalhamos com litigância estratégica, que são aqueles processos sobre causas e questões sociais relevantes para o país, que dizem respeito à liberdade de expressão. Pretendemos atuar nesses processos, inclusive naqueles que estejam ainda nas primeiras instâncias para que cheguem aos tribunais superiores em Brasília – ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Essa litigância estratégica geralmente se dá por meio do “amigo da corte” (amicus curiae), um tipo de intervenção processual que tem por objetivo trazer subsídios para o tribunal. Atuamos também, pontualmente, em treinamentos para jornalistas e advogados para poder justamente formar mais pessoas. No caso dos advogados, para que tenham conhecimento dessa área mais específica do direito.

No ambiente digital, os ataques à liberdade de expressão ganharam novas faces muito diferentes das que tínhamos em um mundo apenas analógico?
Sim, mas eu acho que a principal mudança não se deu na transição do analógico para o digital, mas entre os anos de 2013 e 2016. Foi aí que eu vi uma mudança mais dramática, principalmente, a partir de 2018, em relação aos veículos de mídia: eles começaram a ser processados com mais frequência e, na maior parte das vezes, por razões não legítimas.

Por quê? Pela polarização política que o país vive?
Sem dúvida polarização é um dado relevante, mas também não se pode desconsiderar que o presidente da República faz constantes ataques à imprensa, desde antes mesmo de assumir a Presidência. O discurso dele, antes da posse, já era de impropérios contra jornalistas, sempre com um ataque muito frontal à imprensa. Quando se tem o presidente da República desferindo esses ataques, isso com certeza autoriza outras pessoas a se sentirem mais à vontade para criticar e agredir – de uma forma como eu nunca tinha visto antes. E olha que eu já era adulta no final da ditadura no Brasil, ou seja: tenho conhecimento daquela época.

Qual é o perfil dos atendidos pelo Instituto?
Até o momento nós temos atendido jornalistas, professores e profissionais que não têm diploma de jornalismo, mas que trabalham com a divulgação de informações de uma forma cuidadosa e responsável. Ou seja, na maior parte das vezes são pessoas físicas que têm sido processadas no cível e no criminal. No Brasil, o Código Penal ainda conta com os crimes contra a honra – calúnia, injúria e difamação – com penas privativas de liberdade, ou seja, com pena de prisão. Entendo que se trata de uma configuração atrasada. Esses delitos deveriam, no máximo, ser tratados na área da responsabilidade civil, mas não na área criminal. Ninguém merece ser levado para a prisão por conta de um crime que envolve ofensa à honra. O Tornavoz tem cuidado dessas questões, na área penal, e também na área cível, em relação aos pedidos de remoção de conteúdo e pedidos de indenização por danos morais, que muitas vezes podem atingir os jornalistas ou veículos de uma forma fatal e bem perigosa.

No período eleitoral deste ano, tivemos registro de censuras judiciais que também atingiram veículos tradicionais, como os jornais. Você acha que, nesses casos, os limites da liberdade de expressão foram ultrapassados?
Não sei exatamente a quais os casos de censura você está se referindo, mas é verdade que temos tido muitas tentativas de censura no Brasil e, de modo geral, o Poder Judiciário tem protegido a liberdade de expressão.
Não estou falando em casos particulares e específicos, porque eu também não conheço todos os casos que estão em andamento, mas o Judiciário no Brasil até agora tem respondido bem, ainda que às vezes com uma certa lentidão. Alguns tribunais e alguns magistrados ainda derrapam, mas de um modo geral entendo que o Judiciário tem agido na proteção desse direito fundamental.

As mulheres são hoje o principal alvo dos ataques contra a livre expressão?
As mulheres jornalistas têm sido o principal alvo. O presidente da República incentivou este tipo de perseguição, seja pelos xingamentos que ele faz ou pelas próprias atitudes desrespeitosas, misóginas e machistas. Ele acabou dando exemplo para muita gente repetir atitudes assim. Mas vivemos um momento em que as mulheres não suportam mais qualquer ataque, e estão tratando de impor seus direitos e de denunciar esses ataques. Acho que isso tem sido positivo.

Pensando de forma bem positiva, é possível estabelecer uma sólida rede de proteção judicial, sobretudo aos jornalistas?
Eu acho que é possível. Há um problema bem grave no Brasil, algo que talvez somente o tempo nos ajude a superar: a falta de uma discussão séria e continuada sobre o que o país e a sociedade civil entendem sobre liberdade de expressão. Não adianta tentar importar um modelo dos Estados Unidos – que eu posso achar muito bom, mas você não –, ou de trazer um modelo europeu, um modelo germânico ou exemplos de leis internacionais. Os países possuem outras realidades, e passaram por outros processos culturais e históricos muito diferentes daqueles vividos pelo Brasil. Quando a importação dessas teorias se dá sem filtro, sem um olhar crítico, ela geralmente não é aceita. É necessário, então que o país trate desse conceito. É necessário que nós tenhamos essas discussões sobre o que vem a ser liberdade de expressão, qual é a expressão que a sociedade civil deseja ver protegida. Xingar o Congresso Nacional, por exemplo, é uma atitude permitida, mas se você pega um avião para atingir o Congresso ou pretende jogar uma bomba no Congresso, esse pode até ser um tipo de expressão, mas que não é permitido. Então o que entendemos por liberdade de expressão? Entre o xingamento e a bomba, temos uma zona enorme de diversos tons de cinza, uma gama muito grande de coloração que a sociedade precisa discutir. Precisamos tratar disso com calma, ver o que a Constituição protege no país, o que os doutrinadores, os acadêmicos, o poder Judiciário e os advogados entendem que seja liberdade de expressão, o que é permitido ou não, para daí tirarmos um conceito que seja aceito e acatado, enfim, legítimo. Como eu apontei, no Brasil jornalistas são punidos por crimes contra a honra. Nos Estados Unidos há uma decisão de 1964 que protege até mesmo os erros da imprensa. Simplesmente porque quando você publica notícias diárias no jornal, seja impresso ou digital, é inevitável que erros sejam cometidos. As pessoas são humanas e erram. Do meu ponto de vista, o erro não proposital tem que ser protegido. Você não pode colocar o erro no mesmo patamar que uma publicação sabidamente falsa. No Brasil, há casos, ainda hoje, de jornalistas que estão na iminência de serem presos por um “crime contra a honra” que, na verdade, foi apenas um erro. E às vezes não adianta nem o jornalista se desculpar, porque será condenado do mesmo jeito. Isso exacerba qualquer tipo de reparação que se queira.

Nesta discussão, você acha que é preciso regular as mídias sociais?
A questão da regulação das redes sociais é um assunto que o mundo inteiro está discutindo, não só o Brasil. Os países não sabem ainda exatamente como agir e, daqueles que tomaram uma iniciativa na regulação, alguns voltaram atrás após terem sido muito criticados. Eu acho que algum tipo de autorregulação virá, porque há uma crítica de que as redes sociais também não são transparentes quanto às regulações que fazem sobre suas próprias plataformas. Qualquer atitude nessa área precisa ser extremamente debatida com toda a sociedade civil. Precisa haver uma consulta muito ampla, nos mesmos moldes que o Brasil discutiu o Marco Civil da Internet, com audiências públicas em que diversos setores possam participar de forma colaborativa.

A defesa da liberdade de expressão também tem de ser contada para os nossos jovens, dentro do escopo da educação midiática?
Eu acho que sim, não há dúvida. Da mesma forma que eu comentei que a sociedade civil precisa ter uma discussão sobre o assunto, entendo que os jovens precisam aprender como conviver com opiniões divergentes.
Porque não é “eu quero ter a minha liberdade de expressão porque eu quero matar uma outra pessoa”. Quando você está praticando um ato misógino ou homofóbico, você também não está exercendo a sua liberdade de expressão. Isso precisa ser contado, explicado e precisa ser discutido com as pessoas. Você já viu que no Brasil ninguém é contra a liberdade de expressão? Todo mundo é a favor da liberdade de expressão, desde que não fale de você. Então, é necessário que todos entendam o que é a liberdade de expressão, é necessário que se entenda que funcionários públicos e políticos precisam aceitar críticas, porque faz parte do trabalho deles ouvir e eventualmente aceitar críticas. Há empresários e políticos que movem processo a cada vez que um veículo publica a uma notícia sobre eles. É um absurdo e, inclusive, se valem de advogados públicos para isso. É necessário que haja uma educação desse tema e o Palavra Aberta exerce um importantíssimo trabalho na educação midiática, inclusive para que os jovens, que serão adultos, possam distinguir o que é verdade e o que não é verdade e como checar a informação e se proteger da desinformação.

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