Sem censura

Sem censura 150 150 Instituto Palavra Aberta

* Patricia Blanco

Houve um tempo em que publicar um livro exigia o imprimatur, em latim “deixem-no ser impresso”, autorização do imperador ou da autoridade eclesiástica, enfim do soberano, reconhecendo que naquelas páginas nada havia contra o regime ou a crença dominante. Antes, o escrito passava pela censura para receber o nihil obstat, nada contra. Coincidência ou não, a primeira voz a erguer-se contra tal prática foi do poeta e político, John Milton, precursor da liberdade de expressão, que em 23 de novembro de 1644, e lá se vão mais de 368 anos, elaborou um vigoroso ensaio de nome Areopagitica e, com isso, antecipou-se à defesa de uma prática que, no futuro, seria dominante nos países democráticos.

Hoje, se pudesse renascer e fosse brasileiro, John Milton ficaria estarrecido com a discussão em torno das biografias, isto é, se devem ou não ser autorizadas. Na época em que Milton, viveu a liberdade era uma quase ficção. Estava apenas nascendo. Ao escrever Areopagitica, insurgia-se contra a Inquisição católica que permitia apenas a impressão de textos autorizados por seus censores e, com isso, conquistou as simpatias dos parlamentares puritanos. Também, partia do princípio de que os membros do Parlamento deviam ter acesso a todas as opiniões e argumentações, não apenas àquelas autorizadas pelos poderosos. Inspirado na Grécia Antiga, argumentava que países sem liberdade estavam condenados ao ocaso, o que os ingleses, no esplendor do mercantilismo não desejavam sequer ouvir falar. Ironicamente, o titulo do ensaio era uma referência direta ao Areopagiticus do orador ateniense Isócrates (datado provavelmente de 355 a.C.) que denunciava o excesso de liberdade usufruído pelos cidadãos de Atenas, pregando o retorno a uma democracia em que só poderiam ser eleitos os cidadãos mais qualificados, o que acabaria constituindo uma aristocracia.

Na realidade, é esta a coloração que ganha o debate em torno das biografias, com uma diferença de fundo. Quem pode decidir o que vai ou não vai ser publicado? Eis um tipo de escolha que não cabe a nenhum biografado. No Brasil, a Constituição assegura plena liberdade de expressão, inclusive cultural e artística. Sendo assim, não há porque discutir conteúdos, qualquer que seja ele, antes da sua publicação. Pode-se, sim, e deve-se, discutir eventuais erros e equívocos posteriormente, nunca antes. A prévia autorização caracterizaria censura.

Livros, ao longo do tempo, foram sempre alvos de ataques: queimados, censurados, destruídos, são sempre vítimas de regimes fechados. A história recente demonstra o custo irremediável da censura. Como espelha a história do Brasil Colônia, onde a impressão era proibida, e as muitas agruras dos anos do Estado Novo.

Os livros terminam por superar os obstáculos porque, como extensões da memória, nunca morrem. São personagens constante na história como são inalienáveis os direitos de escreve-los, publicá-los e submetê-los ao julgamento da sociedade. Oficialmente, a luta contra a censura aos livros prolongou-se por mais de dois séculos, perdendo a razão de existir já no século XIX. Na prática, continua recorrente. Mudou de forma e conteúdo. Onde antes prevalecia a censura explicita, agora predomina a censura implícita. Em lugar da censura ideológica, ganha força a censura de caráter econômico.

Curiosamente, muitos do que agora defendem a censura foram censurados durante o regime militar. Por que mudaram de atitude? O que não se pode esquecer, em hipótese alguma, é que censura puxa censura como liberdade implica em mais liberdade. Censurar livros, implica em direta ou indiretamente perfilar-se pró censura de jornais, revistas e meios de comunicação em seu conjunto. Libertá-los, como reza a Constituição, é sinônimo de ampliar ainda mais a liberdade que a sociedade conquistou.

Na realidade, o problema é maior. No regime de liberdade, personalidades públicas estão sujeitos ao julgamento da sociedade, há necessidade de permanente presença e participação, mitos são destruídos com muito mais facilidade do que são construídos. Ninguém, por mais celebridade que seja, pode situar-se num pedestal. Ou assumir uma postura do gênero não me toque, para usar uma expressão bem ao gosto popular. Evidentemente, nada é proibido de se discutir, mas um fato se afirma como irrefutável: a liberdade de expressão no Brasil é plena, não havendo espaço para qualquer forma de censura.

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