Sem limites, mas com censura

Sem limites, mas com censura 550 345 Instituto Palavra Aberta

Francisco Viana*

Filosoficamente, não há problemas em respondê-la. No Brasil dos dias atuais, não há limites e, como cada um é responsável pelo que escreve, as fronteiras da liberdade serão demarcadas, sempre após a publicação, pelas próprias leis. Internacionalmente, também a liberdade caminha para se tornar valor universal. Basta verificar as reações, imediatas, ao brutal (e covarde) atentado terrorista contra a redação do semanário satírico Charlie Hebdo.

As muitas imagens dessa questão dilemática desfilaram, uma após outra, durante os dois dias (21 e 22 de maio) do seminário 2015: Liberdade de Expressão e seus Limites. Organizado pelo Instituto Palavra Aberta e o Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da Universidade de São Paulo (OBCOM-USP), logo na abertura, mostrou as contradições vividas hoje em plena democracia: de um lado a Constituição, assegurando a liberdade de expressão e de imprensa como cláusula pétrea, de outro, as tentativas, sobretudo a partir do recurso a própria legislação, de inibir manifestações de liberdade. Foi o que abordaram Beatriz Kushnir e Eugênio Bucci, além dos participantes de mais dois efervescentes painéis.

Expedições do presente, a verdade como processo

Estiveram lado a lado no painel que deu o título ao evento, só que acrescido da frase: Suis Je Charlie Hebdo? Certamente, sim porque foi o assunto inicial da apresentação de Bucci. “Todos nós morremos um pouco nas vítimas do Charlie Hebdo…”, disse o professor. Mas vamos começar pelo princípio. A primeira palestrante, Beatriz Kushni (pesquisadora e doutora em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas), tratou de um tema pungente: a dificuldade, imensa, de retratar os acontecimentos do período ditatorial que se seguiu ao golpe de 1964 e que acaba de completar meio século. “O problema é a dificuldade de acesso aos documentos oficiais, o que torna o passado um lugar a ser descoberto por expedições do presente”, alegou.

Autora do livro Cães de guarda: jornalistas e censores – do AI-5 à Constituição de 1988, Beatriz lembrou: “o processo de redemocratização que apaziguou arestas sem mexer nas feridas, sangra para todos os lados. E de tempos em tempos, larvas quentes são cuspidas com violência. O passar do tempo, infelizmente, ao meu juízo, diminuirá a intensidade e o calor destes momentos de ruptura, e não auxiliará a dissolver os fantasmas do passado. Longe estamos de um processo que esgarce o tecido social e faça este fogo das entranhas dizimar a superfície. Esta não é a tradição “cordial” da sociedade brasileira.”

Referia-se as “expedições do presente” que encontram a sua definição na libertação dos arquivos, muitos ainda, digamos assim, prisioneiros da censura. Sem a democratização dos arquivos, a lógica da democracia – a liberdade plena – não se concretiza.

Eugenio Bucci, conselheiro do Instituto Palavra Aberta, professor e autor da obra O Estado de Narciso: a comunicação pública a serviço da verdade, falou na sequência. Puxou os fios da história da liberdade, desde A Cidade de Deus, de Agostinho e John Milton, percursos da defesa da liberdade de impressão, até A Declaração dos Direitos do Homem e os dias atuais, para fundamentar afirmações essenciais. A liberdade é um direito, a verdade é um professor, não existe democracia sem a ironia. Matar a ironia – referia-se aos cartunistas do Hebdo – equivale a matar a essência da modernidade.

Conquista cotidiana e censura na democracia

O auditório Auditório Lupe Cotrim, da ECA, estava lotado. Antes do primeiro painel, o ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, saudou os participantes por meio de um vídeo. Na sequência, aconteceram as intervenções de Gustavo Binenboj, Fernando Schüler e Ricardo Gandour (os dois últimos também conselheiros do Instituto Palavra Aberta). O tema dos limites, mais exatamente, os não limites, ganhou novos caminhos com o tema “O desafio da defesa cotidiana de liberdade de expressão”.

Quais? Gandour, diretor de conteúdo do Grupo Estado, disse que “o desafio que se repete no dia a dia é a busca da ‘melhor versão da verdade’ e, esta, exige, acima de tudo, um método de trabalho, além dos domínios da narrativa multimídia. Método confunde-se com a atitude do jornalista em defesa do interesse público e do exercício da liberdade que, evidentemente, não deve ter limites. Cerceá-la, é infantilizar a sociedade”, afirmou.

Fernando Schüler foi incisivo, ao referir-se às novas gerações: “São bem informadas, críticas, mas encontram a grande fonte de informações nas mídias sociais.” Seria limitante? Sim. A tendência, como assinala Schüler, é absorver apenas a informação com a qual encontra identidade. “O restante é deletado com naturalidade. Mas o grande desafio, no momento, encontra-se nos passos que dentro da democracia os governos dão para limitar a ação da mídia, exercendo controle sobre a publicidade e matérias primas, como o papel.”

Foi o que também advertiu o advogado e professor da Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro, Gustavo Binenboj: “A censura não é mais exercida apenas pelas ditaduras e passou a fazer parte também da democracia.” O ponto de unidade, porém, é o mesmo: a defesa da moral e dos bons costumes. É a forma que os novos censores encontrariam para justificar restrições eleitorais, biografias não autorizadas, direito ao esquecimento, enfim, um imenso inventário de medidas silenciadoras.

Censura ao humor e perfil de pesquisas

O seminário terminou com o painel “Liberdade de Expressão: Polêmicas, Conflitos, Intolerância e Pluralidade”. Participaram Elias Thomé Saliba, Maria Luiza Tucci Carneiro e Marcelo Moscogliato. Cada um abordou um tema especifico, uma intolerância específica. Discutiu-se da perseguição ao humor, a intolerância motivada pela questão do holocausto e da censura pela via judiciaria. Com perguntas e questionamentos, a plateia participou ativamente.

No dia seguinte (22 de maio), foi a vez de um debate dos mais emblemáticos do interesse pela liberdade de expressão: a apresentação e discussão de cerca de seis dezenas de trabalhos. Um temário abrangente: da homofobia a cultura do ódio, da classificação de filmes a imunidade parlamentar. No final, parece emergir uma conclusão: a trilha para a liberdade de expressão e de imprensa será longo e conflituado, mas a sociedade está caminhando e tem avançado. Como ensinou Lacan, “é palmilhando os caminhos da experiência que as descobertas se multiplicam e se afirmam”.

* Francisco Viana é jornalista e mestre em Filosofia Política (PUC-SP)

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